Título: Conselhos de ano novo para o ministro Palocci
Autor: André de Melo Modenesi
Fonte: Valor Econômico, 06/01/2006, Opinião, p. A8

Se um Nobel derruba mitos do neoliberalismo, por que ministro não faz o mesmo?

O livro "Os exuberantes anos 90: uma nova interpretação da década mais próspera da história", de Joseph Stiglitz, deveria ser leitura obrigatória dos brasileiros, notadamente os formuladores de política econômica. Stiglitz não se limita a uma análise econômica do processo de criação e reversão da exuberância irracional, e de eventos correlatos, como os escândalos contábeis - em que se destacam os casos da Enron e da Xerox - possibilitados pelo excesso de desregulamentação resultante do desequilíbrio entre o Estado e o mercado, em período em que "as finanças reinaram absolutas". Trata-se de verdadeira sociologia da Nova Economia, que revela a influência das relações de poder - destacando, com muita propriedade, que o mercado financeiro é um grupo de interesse como qualquer outro - e da ideologia na definição das políticas econômicas. No capítulo 11, o Prêmio Nobel de economia de 2001 desconstrói uma série de mitos que foram universalmente impostos pelos EUA - dada sua influência nas instituições econômicas internacionais, sobretudo o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio - como verdades supremas. Alguns desses mitos, que consubstanciam o chamado consenso de Washington, viraram verdadeiros mantras repetidos à exaustão mundo afora. No Brasil, a maior parte da imprensa especializada, da academia e dos formuladores de política econômica realizou seu "dever de casa" e transformou o mantra que emana de Washington em fundamento da política econômica. São cinco os mitos contestados por Stiglitz, expostos a seguir: 1) A redução do déficit público pode reverter uma recessão econômica. O que é incorreto pois, "no curto prazo, os déficits [públicos] podem ser absolutamente essenciais para a saída de uma recessão, e os custos econômicos e sociais de prolongar uma recessão são enormes, muito maiores do que os custos associados ao aumento do déficit" (pág. 281). Este mito contradiz uma das primeiras lições de macroeconomia: a demanda agregada é igual a consumo + investimento + gastos do governo + saldo comercial. Uma redução de qualquer um de seus componentes (inclusive os gastos do governo) reduz a demanda agregada e, portanto, desacelera a economia. 2) Os mercados são conduzidos pela mão invisível. Ou seja, o livre jogo entre oferta e procura resultaria em um equilíbrio eficiente e o bem geral seria promovido pela busca do interesse particular, como propôs Adam Smith no século XVIII. O que não é verdade: "A competição nem sempre conduz a resultados eficientes" (pág. 285).

Superávit primário de 5% do PIB é bom para Wall Street e para a avenida Paulista, mas pode não ser para o resto do país

3) O que é bom para o mercado financeiro é bom para os EUA e para o resto do mundo. O que é, no mínimo, extremamente ingênuo: "Os mercados financeiros não são a fonte da sabedoria; o que é bom para Wall Street pode ou não ser bom para o resto da sociedade; e os mercados financeiros são míopes" (pág. 286-7). Ou seja, o mercado financeiro é um grupo de interesse como qualquer outro e os seus anseios não devem ser confundidos com as demandas dos demais grupos de interesse que existem no país. A negação deste mito é particularmente relevante, pois os interesses do mercado financeiro têm sido travestidos de uma espécie de vontade geral - algo que está acima dos interesses individuais, que "se prende somente ao interesse comum", nas palavras de Jean-Jacques Rousseau. 4) O Estado deve ser mínimo. O que é uma falácia, pois um Estado minimalista não é capaz de promover um bom desempenho econômico e o bem-estar social, pois ele desempenha "papel importante, embora limitado, não apenas nas correções das falhas e limitações do mercado, mas também na busca por justiça social" (pág. 11). 5) O capitalismo americano é um modelo de organização socioeconômica a ser adotado pelo resto do mundo. O que causa arrepios a qualquer um que tenha mínima noção de antropologia social: "O sistema econômico americano tem enormes méritos, mas não é o único que funciona; outros sistemas podem funcionar melhor para outras nações" (pág. 289). Segundo Stiglitz, a crença cega nesses mitos explica boa parte do que deu errado nos EUA durante os anos de 1990 e, pois, se deve evitar. Não apenas nos EUA. Esta lição é particularmente relevante para nós brasileiros que parecemos estar historicamente condenados a copiar tudo o que é feito (pensado, pregado, ou praticado) nos países desenvolvidos, a despeito do oceano de peculiaridades que nos separa. Assim, são dados conselhos que parecem até endereçados ao governo do presidente Lula, sobretudo ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que tem fundamentado a política econômica nos mitos contestados por Stiglitz: "Um país que se sujeita exclusivamente à disciplina dos mercados financeiros se expõe ao perigo" (pág. 287). Soa como se advertisse: ministro, em economia tudo tem o seu custo, isto é, há sempre um trade-off; um superávit primário de 5% do PIB é excelente para Wall Street e para a avenida Paulista, também, mas não é tão bom assim para o resto do país, não... Para o público em geral, a negação desses mitos pode parecer algo muito inusitado; para o leitor especializado, talvez não - ainda que muitos jornalistas, acadêmicos e policymakers de plantão os repitam ad nauseum. Mas o que realmente surpreende é ouvir isso de uma personalidade com a autoridade de Joseph Stiglitz. Seu currículo lhe confere visão privilegiada da inter-relação entre os agentes econômicos, os atores sociais e os grupos de interesse nos processos decisórios de formulação da política econômica. É professor e pesquisador há 35 anos - primeiro na Universidade de Stanford e hoje em Columbia - e foi laureado com o Prêmio Nobel de economia; foi membro e presidente do Conselho de Consultores Econômicos que, com o Tesouro e o Departamento de Administração e Orçamento, formulavam a política econômica do governo Clinton e economista-chefe e vice-presidente do Banco Mundial.