Título: A responsabilidade de Amorim na OMC
Autor: Sérgio Leo
Fonte: Valor Econômico, 19/12/2005, Brasil, p. A2

O Brasil tocava o bumbo, mas não marcava o compasso. Com essa rara imagem musical (já que agora tem paixão pelas metáforas futebolísticas), o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, define como era a atuação do Brasil na última grande rodada de negociações comerciais internacionais, a Rodada Uruguai, que criou a Organização Mundial do Comércio (OMC). Na reunião da OMC encerrada ontem, o próprio Amorim empunhou a baqueta, e seu pulso influenciou, sem dúvida, a marcação do ritmo, nervoso, da bateria em Hong Kong. Um importante negociador americano, sob a condição de anonimato, descreveu a imagem do ministro brasileiro, um dos principais protagonistas do encontro em Hong Kong: carismático, uma mescla incomum de conhecimento técnico e visão política, Amorim seria, hoje, uma das principais referências na OMC, que impressionou os americanos por sua dedicação na tentativa de tirar do atoleiro a atual rodada de negociações comerciais. É também "expansivo", ou, como descreveu o americano, fala, nas reuniões, talvez cinco vezes mais que o segundo mais falante (em Hong Kong, mais de um negociador se queixou da loqüacidade - para alguns excessiva auto-suficiência - do brasileiro). Mas vale a pena ouvi-lo, ressalvou o negociador dos EUA. Amorim tem marcado a atuação na OMC por saídas originais. Foi o criador do G-20, grupo que deu um fôlego inusitado à participação dos países em desenvolvimento nas discussões sobre agricultura. Foi o autor e um dos maiores articuladores da proposta de fixação, em Hong Kong, de uma data limite para o fim dos subsídios à exportação - o que resultou em um dos poucos (e simbólicos) resultados da conferência encerrada ontem. Costuma ser uma referência na discussão de propostas a portas fechadas na OMC. É bom em levar os outros a fazer o que ele quer; mas tem de provar que também pode fazer concessões, diz o negociador dos EUA, numa queixa que soa como elogio. O Brasil sempre teve destaque, mas Amorim levou o país ao núcleo decisório da OMC. Nas entrevistas coletivas, coordena as manifestações, determina o momento das perguntas e até do fim da conversa. Foi um dos mais fotografados, o mais convidado a eventos das organizações não governamentais e mereceu dezenas de páginas dedicadas a seu perfil (em geral elogioso) na imprensa internacional. "Tenho as cicatrizes da Rodada Uruguai", costuma dizer, lembrando dificuldades e vacilações da equipe de negociadores do Brasil (que integrou e, depois, chefiou) durante a rodada, de 1986 a 1994. Os países em desenvolvimento, então recém-saídos do modelo protecionista de substituição de importações, sujeitos a crises financeiras e imersos em uma onda de liberalização, pareciam ter "complexo de culpa" ao participar das negociações para redução de tarifas industriais, lembra.

Imagem do ministro é melhor no exterior

Neófitos no mundo do comércio liberalizado, esses países não tinham sequer clareza de seus interesses e objetivos, comenta ele, ao lembrar que jamais suspeitou que a discussão do acordo sobre subsídios na indústria teria reflexos sobre a indústria aeronáutica brasileira, nos financiamentos oficiais à Embraer. "Na época estávamos preocupados com outra coisa, os possíveis efeitos dos subsídios das antigas estatais sobre as empresas privatizadas", diz. Trabalhando por princípios, mais que por pragmatismo, os negociadores brasileiros da Rodada Uruguai evitaram que alguns acordos tivessem uma linguagem excessivamente detalhada, com fortes compromissos. Isso deixou alguma liberdade para as políticas públicas, como no caso das patentes. Atento às experiências adquiridas na última rodada, Amorim tem manejado na OMC para evitar o isolamento do Brasil e para impedir compromissos que amarrem excessivamente os governos em desenvolvimento. Sua fama, entre os negociadores, não é a de um ideólogo, mas de um pragmático, e obstinado. Tem imagem até melhor lá fora que aqui dentro: no Brasil, recebe críticas da indústria pelo que acusam de falta de representação dos empresários no núcleo da equipe negociadora, e é atacado pelo agronegócio pela falta, por enquanto, de resultados práticos para o comércio de produtos agrícolas. Com os resultados ambíguos da reunião da OMC, Amorim tem um duplo desafio: corresponder às expectativas de liderança criadas entre os países em desenvolvimento; e trazer resultados concretos, capazes de se refletirem na contabilidade do setor privado brasileiro.