Título: Concessão intempestiva para o governo chinês
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2004, Opinião, p. A12

Os chineses são milenarmente respeitados por sua habilidade comercial e conseguiram arrancar do Brasil aquilo que até agora nenhum país com um peso econômico semelhante lhe deu - o reconhecimento de que a República Popular da China é uma economia de mercado. Os EUA, seus maiores parceiros comerciais, têm sistematicamente se recusado a isso. Mas, com uma mistura de ultimatos ríspidos e ofertas de investimentos bilionários, o governo chinês conseguiu o que queria do Brasil. O governo brasileiro, por seu lado, cedeu cedo demais em troca de vantagens econômicas que podem se revelar temporárias ou reversíveis. A China inunda o mundo com suas mercadorias baratas e é o país sob o qual pesa o maior número de acusações da prática de dumping em todo o planeta. Ela foi aceita na Organização Mundial do Comércio como economia em transição por 15 anos, justamente pelo fato de o determinante peso do Estado nos sistemas produtivo e financeiro, reforçado pelo sistema político ditatorial, tornar o subsídio uma prática cotidiana de funcionamento da máquina econômica chinesa. A base do sistema de crédito é estatal e ineficiente, a ponto de se estimar que o rombo nos cofres dos bancos estatais atinja centenas de bilhões de dólares. Há anos com taxas de juros negativas e sem oferecer financiamentos pelas regras prudenciais vigentes nas economias de mercado, o prejuízo dos bancos se transfere para o preços dos bens chineses, um dos fatores que lhes assegura uma enorme e questionável competitividade. É com base nesses fatos que se criou um sistema de proteção na data do ingresso da China na OMC, pelo qual enquanto a caixa-preta da formação dos preços chineses não for aberta e seguir as trilhas que valem para os demais países, processos para impor salvaguardas por parte dos países prejudicados são mais rápidos e menos sujeitos a contestações. O Brasil abriu mão dessas facilidades, o que pode ter um alto custo no futuro, segundo estudo realizado pela Fiesp em meados do ano. Nele, apontam-se problemas de dumping em 17 setores, como máquinas e equipamentos, autopeças, material elétrico, laminados de aço etc. A gravidade da ameaça de dumping é patente se for considerado que vários dos produtos objetos de concorrência predatória estão entre os mais exportados pelos chineses ao Brasil. Máquinas e aparelhos mecânicos e elétricos correspondem a 48% das compras brasileiras oriundas da China. A China tem uma relação econômica com o Brasil quase similar à das velhas potências coloniais, que compravam matérias-primas e exportavam bens elaborados. Dois terços das vendas chinesas ao Brasil são de manufaturados. No caminho inverso, cerca de 90% da exportação brasileira é composta de grãos, minérios, combustíveis, couro e pastas de madeira. É uma relação deste tipo que os chineses vieram sacramentar, como mostram os projetos que estão dispostos a financiar no Brasil - basicamente os que ponham de pé ou melhorem a infra-estrutura para que tenham garantia de suprimento, a bom preço, das matérias-primas de que necessitam. As concessões feitas pelo governo chinês não exigiriam o alto preço pago pelo Brasil. A China tem tratamento discriminatório contra as carnes brasileiras. O Brasil ganhou o direito de exportá-las, algo que pode render US$ 600 milhões a curto prazo. O governo brasileiro argumenta que não abrirá mão dos instrumentos de defesa comercial, mas ela se torna não-automática e de aplicação mais difícil. Tudo indica que o reconhecimento da China como economia de mercado tenha se pautado por critérios políticos, a despeito de sua mais que questionável necessidade econômica. O presidente Lula , em tom épico, disse que a parceria com os chineses redesenha o mapa mundial do comércio e "servirá de paradigma para a cooperação Sul-Sul", dois objetivos com os quais a preocupação da China é zero. Além disso, contou como motivação a idéia fixa do atual governo, de obter apoio para que o Brasil tenha assento no Conselho de Segurança da ONU. À parte as brechas criadas na proteção comercial do Brasil, a concessão tem vários inconvenientes. O presidente russo, Vladimir Putin, que visitará Brasília neste mês, pede a mesma coisa e oferece apoio semelhante às pretensões políticas do Brasil na ONU. Nas negociações de um acordo com a União Européia, ela reivindicou para os países do ex-bloco comunista concessão idêntica e foi rechaçada. Com menos razão, o Brasil agora cede à China por afinidades que não existem no plano econômico - a China é também um fantástico concorrente do Brasil - e soam como desvario no plano geopolítico.