Título: Reflexões sobre nossas instituições severinas 1
Autor: Cláudio Gonçalves Couto
Fonte: Valor Econômico, 19/12/2005, Política, p. A9

Inicio hoje uma pequena série de artigos, discutindo problemas de nossas instituições de governo, em particular aqueles relacionados à sua composição, ou ao recrutamento das "elites" que ocupam os postos dos quais emanam as decisões que afetam nossas vidas. Escolhi intitulá-las como "instituições severinas" porque ninguém expressa melhor a baixa qualidade do processo de seleção de nossas "elites" do que o ex-presidente da Câmara dos Deputados. A própria escolha de Severino decorreu de uma conjunção de presepadas da qual ninguém escapou: o PT e o governo, pela arrogância de insistir com um candidato impalatável, invocando respeito à "tradição da Casa"; a oposição, por votar em Severino para, de forma oportunista, fustigar o governo; e o baixo clero - a terceira divisão parlamentar -, por atrever-se a bancar o aprendiz de feiticeiro, acreditando ter condições de assumir responsabilidades superiores às suas capacidades, guindando o deputado da triste figura à condição de terceiro homem da República. Deu no que deu. Nesta semana que passou, a mesma severina Câmara dos Deputados deu mais uma mostra de que muito pouco se pode esperar de uma Casa cuja composição apresenta um nível de qualidade sofrível - salvo as mui honrosas exceções de praxe. Num ato de auto-absolvição, salvou a pele do deputado Romeu Queiroz, que admitida e comprovadamente operou "dinheiro não-contabilizado" para fins eleitorais. Trata-se de auto-absolvição porque o que se pode depreender de tal resultado é que os parlamentares estão, na realidade, inocentado a si próprios - afinal de contas, que cidadão brasileiro, em sã consciência, alimenta a esperança de que não sejam, em sua esmagadora maioria, eleitos lançando mão de recursos de caixa dois? Ao menos é isso que nos permitem concluir. Abre-se agora o precedente para a absolvição de todos os demais sacadores do "valerioduto". Que festa! E por falar em festa, o não menos severino Congresso Nacional conferiu a si mesmo, na feliz expressão do deputado Chico Alencar, um "mensalão legal", ao autoconvocar-se e, assim, auto-agraciar-se com um polpudo abono natalino. Temos aqui um belo exemplo de incentivo adverso (às instituições republicanas) no funcionamento de nosso Congresso: o prêmio por improdutividade. Não é sensacional?! Como não conseguem dar conta do recado ao longo do ano todo, nossos severinos congressistas concedem a si mesmos um dinheirinho extra, para tentar correr atrás do prejuízo, fazendo serão em janeiro.

Instituições são produto de decisões de legisladores

Talvez o emolumento adicional ajude nas campanhas do próximo ano. Será que é isto o que entendem por financiamento público de campanha política? E não é por falta de iniciativa de parlamentares da primeira divisão que o legislativo deixa de locupletar seus membros com recursos públicos. Há duas propostas de decreto Legislativo, do já citado Chico Alencar (PSOL-RJ) e de Raul Jungmann (PPS-PE), cancelando a remuneração quando das convocações extraordinárias; não as aprovam porque não lhes convém. Aliás, cabe questionar se faz algum sentido a existência de tanto tempo de recesso parlamentar. Além do longo período que vai do meio de dezembro ao Carnaval, existe ainda o recesso de julho; e isto para parlamentares que dispõem de passagens aéreas de ida e volta para seus Estados todos os finais de semana. Como normalmente se deixa Brasília na quinta-feira à noite e se regressa na manhã de terça, pode-se perguntar para quê o recesso. Muito mais razoável e consentâneo com os princípios de eqüidade seria que os parlamentares dispusessem apenas de férias normais, como a de qualquer outro brasileiro. Mas como vivemos num país em que alguns são mais iguais do que os outros... Portanto, não é casual que o Poder Legislativo seja o de menor prestígio aos olhos da população e figure como umas das mais detestadas instituições nacionais, como freqüentemente atestam as pesquisas de opinião pública. Isto é lastimável para o país - afinal, é muito frágil um regime democrático sem um parlamento forte e respeitável. Mas ninguém é mais responsável por essa imagem do que os próprios parlamentares - afinal de contas, regras que regem o jogo político não são cogumelos que brotam da relva; são elaboradas pelos legisladores, assim como as regras que ordenam sua própria conduta no parlamento. Talvez o que falte seja uma maior pressão externa sobre o Legislativo, de modo a constranger os congressistas a uma conduta mais consentânea com um regime republicano - e nisto, é a mídia que tem papel fundamental, numa cobertura que seja menos caricata e mais crítica. Todavia, reivindicar uma cobertura menos caricata da mídia sobre o parlamento não significa fechar os olhos ao que este Congresso, e sobretudo a Câmara dos Deputados, tem-nos demonstrado cabalmente por seus próprios atos: boa parte de nossa classe política é uma escória. As primeiras responsáveis por isso são as lideranças partidárias, que oferecem essa escória ao eleitor - em parte pelo fato de que elas mesmas não escapam a tal condição, como ficou evidenciado pela conduta de presidentes ou ex-presidentes de partido que, no turbilhão do escândalo ainda em curso, perderam seus mandatos parlamentares - por cassação ou renúncia. Isto, todavia, não deve nos surpreender; o sociólogo italiano Vilfredo Pareto, um fundador das teorias sobre elites, ensinava que todos os segmentos da sociedade se compunham de uma elite e uma não-elite - e isto valia até mesmo para os setores socialmente mais desprezados, como os ladrões.