Título: Mercados da Riqueza e política monetária
Autor: Luiz Gonzafa Belluzzo
Fonte: Valor Econômico, 16/01/2006, Opinião, p. A9

Os críticos da finança globalizada - ou seja, da abertura generalizada das contas de capital e da desregulamentação dos mercados - costumam atribuir a relativa calmaria que prevaleceu na três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial à chamada "repressão financeira". Esta incluía a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juros e restrições ao livre movimento de capitais. Os bancos comandavam o crédito e estavam comprometidos, numa relação de mútua confiança, com o desempenho produtivo das empresas. As crises de liquidez, como a de 1966 nos Estados Unidos, eram raras e, em geral, dóceis às intervenções dos bancos centrais. Nos países desenvolvidos, a políticas monetárias e fiscais anticíclicas do keynesianismo - mesmo bastardo - cumpriram o que prometiam, ou seja, sustar a recorrência de crises de deflação de ativos e de "desvalorização do capital", fenômeno que assolou o capitalismo do final do século XIX até a Grande Depressão dos anos 30. A reiteração de intervenções de última instância dos bancos centrais e a geração de déficits fiscais - ao aumentar a dívida pública de "boa qualidade" - impediram a desvalorização da riqueza já existente e ampliaram o peso dos ativos financeiros na riqueza total. Mudanças subjetivas (Keynes diria psicológicas) foram provocadas pelas intervenções bem-sucedidas: constitui-se uma nova agenda de convenções, antitética àquela que imperou entre o final do século XIX e a Grande Depressão. Criou-se, na verdade, uma situação de "moral hazard" permanente, ou seja, um viés altista na psicologia dos investidores. Seja qual for a intensidade da flutuação da economia, as perdas devem ser limitadas. Ironias engendradas no curso da história: as ações de estabilização do Estado keynesiano favoreceram avanço do processo de "securitização" e de desregulamentação dos mercados. Geraram, desta forma, as condições de obsolescência da "repressão financeira": os critérios de avaliação dos Mercados Secundários da Riqueza voltaram a comandar as decisões de empresas, consumidores e governos. As técnicas de securitização de créditos bancários, o uso de derivativos e a intensa informatização dos mercados permitiram ampliar o volume de transações. Estas massas de capital financeiro estão concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais. São fundos de pensão, fundos mútuos e - o último rebento da finança moderna - os fundos de hedge que, operando em vários praças financeiras, usam intensamente o crédito para "alavancar" posições em ativos.

A "exuberância irracional" agora contamina quatro mercados: bônus, imobiliários, commodities e os de moedas de países emergentes

Os capitais se movem entre as economias nacionais na busca de oportunidades de arbitragem ou de ganhos especulativos, sempre a envolver apostas quanto aos movimentos de preços dos ativos denominados nas diversas moedas. O "moral hazard estrutural", de certa forma, tornou os bancos centrais reféns da garantia de liquidez, no caso de oscilações bruscas nos preços e suspeita de risco sistêmico. Não seria fora de propósito buscar aí as origens de processos altistas prolongados, assim como da "ganância infecciosa" que, não raro, fomenta a febre de fusões e aquisições, sempre sustentados, direta e indiretamente, pelo potente sistema de crédito. Os episódios de euforia global e liquidez excessiva terminariam em reversões espetaculares não fossem as intervenções de última instância do Banco Central mais poderoso e de seus acólitos no centro do sistema monetário internacional. Assim, o predomínio da lógica financeira impõe ao Federal Reserve, administrador de última instância do sistema, um manejo delicado da política monetária. Na conferência de Jackson Hole, Alan Greenspan deixou claro, em sua linguagem críptica, que, no clima de "moral hazard estrutural" não há espaço para radicalismos, ou seja, para movimentos bruscos das taxas de juros. Greenspan manifestou, na realidade, preocupação com a "generalização" da inflação de ativos, num ambiente de baixa inflação nos mercados de bens e serviços. A "exuberância irracional" agora contamina quatro mercados: bônus, imobiliários, commodities e os de moedas de países emergentes. Quanto aos riscos de inflação nos preços de bens e serviços, observamos a presença de forças que se movem em sentido contrário: de um lado, a tendência deflacionária dos preços dos produtos manufaturados, por conta do excesso de capacidade à escala global; de outro, a demanda chinesa e as taxas de juros, ainda baixas, favorecendo a formação de posições especulativas altistas nos mercados de commodities. As quatro bolhas, a ampliação da posição devedora líquida americana e o risco sempre presente da aceleração inflacionária colocam desafios formidáveis aos bancos centrais. Até agora as políticas monetárias e os arranjos cambiais têm conseguido promover a "fuga para frente", no afã de manter sob controle os Mercados da Riqueza e, ao mesmo tempo, sustentar as taxas de crescimento da economia global. Sob o crescente predomínio dos Mercados da Riqueza, a incorporação do consumo individual à dinâmica do novo capitalismo tornou-se crucial para as perspectivas de crescimento. Não se trata apenas da completa sujeição das "necessidades" aos imperativos da mercantilização universal. No capitalismo avançado americano, o circuito riqueza-renda-consumo começa com a valorização fictícia do patrimônio das famílias, passa pela produtividade e pela poupança dos trabalhadores asiáticos e facilita o crédito barato aos consumidores. Ao fim e ao cabo, o circuito riqueza-consumo "libera" uma fração crescente do poder de compra das famílias de renda média e baixa para o endividamento, enquanto os que estão no topo da pirâmide, os credores líquidos, se apropriam da valorização da riqueza financeira.