Título: Balança mas não cai?
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2004, Opinião, p. A13

O ano de 2004 está terminando e a temporada de previsões econômicas para 2005 já vai a pleno vapor. Nesses exercícios de futurologia, nenhum tem sido tão sistematicamente equivocado quanto o de previsão sobre o desempenho da balança comercial brasileira. Basta lembrar que, ao final de 2003, previa-se saldo comercial para 2004 de US$ 17 bilhões e fecharemos o ano com mais de R$ 32 bilhões. Ou que, ao final de 2002, o número para 2003 era US$ 16 bilhões - foram atingidos US$ 24,8 bilhões. Tamanhos erros ocorrem porque a balança comercial brasileira está refletindo mudanças estruturais ocorridas na economia nos últimos 15 anos que ainda estamos muito longe de compreender. O desempenho da balança comercial é resultado de uma vasta conjunção de fatores: o nível e a volatilidade da taxa de câmbio real; o ritmo de atividade econômica interna e mundial; o estágio no ciclo de preços internacionais das commodities; a política comercial - proteção do mercado interno, acesso a mercados externos e promoção das exportações; e, por último, mas não menos importante, a competitividade microeconômica da produção nacional. Rotineiramente, os três primeiros fatores são os considerados nas projeções. É com base neles que os analistas estão sugerindo um leve recuo do saldo comercial em 2005. De fato, o real está se apreciando, a alta dos preços internacionais das commodities já está sendo revertida e o ritmo de expansão da demanda mundial, China incluída, dá sinais de arrefecimento, fatos que reduzem o ímpeto recente do crescimento das exportações. Em contraposição, a expansão da economia brasileira em 2005, embora pareça preservada, não deverá ocorrer às taxas exibidas no corrente ano, porque não contará, entre outros fatores, com uma base tão deprimida quanto foi a do ano de 2003. Decorre daí que as importações irão crescer pouco e haverá pouca pressão sobre os excedentes exportáveis, dando suporte às mencionadas projeções de pequena redução do saldo. São os dois últimos fatores, o alcance da política comercial e as transformações competitivas em curso na indústria, que talvez expliquem os erros incorridos nas projeções passadas e lancem dúvidas sobre previsões correntes. As políticas de promoção de exportações estão completando 25 anos. Seu início data da posse do general Figueiredo, ainda na ditadura militar, com o lema "Exportar é o que importa". Havia, de fato, o que exportar, porque grandes projetos do II PND acabavam de amadurecer, dotando o país de unidades industriais novinhas em folha, com tecnologias atualizadas e custos competitivos de produção. Por isso, os benefícios fiscais e financeiros distribuídos a rodo na década de 1980 propiciaram o maior ajuste exportador da história brasileira. Junto com o ultraprotecionismo do mercado interno, que tornava virtualmente impossível a realização de importações, produziram um saldo de mais de US$ 19 bilhões já em 1988. Vem desse tempo a definição do padrão de especialização da pauta de exportações, que até hoje predomina nas nossas vendas externas. Com o surgimento das políticas neoliberais no início dos anos de 1990, os programas de fomento das exportações foram interrompidos, até ressurgirem, já ao final da década, não mais assentados em incentivos fiscais, mas em esforço de venda e crédito (Apex, Proex, Camex etc.). Não é fácil estimar quanto do excelente desempenho recente das exportações brasileiras deve ser creditado a essas políticas. Tudo indica que, além de uma contribuição não desprezível, a política serviu também para sedimentar nas estratégias empresariais a busca do mercado externo como opção mais permanente de receitas, e não somente como escoadouro de excedentes nas fases de recessão.

A manutenção da tendência de apreciação do real pode erodir rapidamente o atual saldo comercial, tão duramente conquistado

Mais difícil ainda é avaliar se essa linha de ação ainda tem fôlego para gerar novos negócios em grandes volumes, pois o esforço de venda pressupõe a existência de produtos para vender. Aparentemente, esse não é o caso, pois, à exceção do agronegócio, não houve e não há uma onda de investimentos à vista na produção dos bens e na remoção dos obstáculos estruturais à competitividade das empresas. A grande incógnita, portanto, é a real competitividade microeconômica da produção nacional. No plano das exportações, os dados não são muito alvissareiros: entre 1994 e 2002, o market share das exportações brasileiras no mercado mundial caiu de 0,75% para 0,65% nos produtos manufaturados, e de 1% para 0,7% nos produtos minerais. Apenas para os produtos agrícolas houve evolução positiva: de 2,6% para 3,1%. Isto é, a despeito de todo o crescimento absoluto ocorrido, expandimos nossas exportações em ritmo inferior ao dos concorrentes. No plano das importações, em 2002 consolidou-se uma percepção, provavelmente falsa, ou no mínimo prematura, de que a indústria teria promovido uma rápida re-substituição de importações, em ajuste à desvalorização cambial de 1999. Na verdade, ocorreu algo muito distinto. Desde o início da abertura comercial, e particularmente após a ultra-abertura que caracterizou o imediato pós-Plano Real, a indústria brasileira desenvolveu uma grande flexibilidade de sourcing, isto é, uma grande capacidade de trocar compras locais de insumos por importação e vice-versa, ao sabor das flutuações da taxa de câmbio e dos custos relativos de produção. As importações dos 12 meses entre outubro de 2003 e setembro de 2004 (US$ 58,4 bilhões), período de forte expansão de atividade industrial e de apreciação cambial, estavam cerca de 25% maiores do que as de igual período de 2003, mas ainda em valores inferiores aos registrados em 1997 ou 1998. Isso se deveu ao fato de que as importações de bens de capital permaneciam contraídas (US$ 5,5 bilhões contra US$ 6,9 bilhões, em 2002, ou US$ 12,8 bilhões, em 1998). Já as importações de bens intermediários, ligadas portanto à produção corrente, acumularam US$ 37,3 bilhões entre outubro de 2003 e setembro de 2004, quase 75% do movimento total, excluindo petróleo (contra US$ 31 bilhões e 58% em 1998). Esses números sugerem que existe um espaço importante para o crescimento das importações. Em suma, no futuro imediato parece correta a constatação de que a balança comercial balança, mas não cai muito. No entanto, a análise do desempenho de longo prazo da corrente de comércio exterior brasileira mostra que as exportações seguem uma trajetória de expansão contínua e suave, independente das oscilações da economia, enquanto as importações, ao contrário, têm um comportamento extremamente irregular, com explosões e contrações comandadas pelo quadro macroeconômico. A manutenção da tendência de apreciação do real pode erodir rapidamente o atual saldo comercial, tão duramente conquistado.