Título: "Mudar a LRF é casuísmo e afasta investidor"
Autor: Jamil Nakad Junior e Cristiane Agostine
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2004, Especial, p. A14

Entrevista Para Amir Khair, comprometimento com a dívida paulistana deveria passar de 13% para 22% da receita

Qualquer mudança que resulte na renegociação das dívidas de Estados e municípios é "casuística", na visão do ex-secretário de Finanças de São Paulo Amir Khair, o engenheiro que cuidou da pasta durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Consultor de finanças públicas, que tem na associação de secretários de finanças das capitais (Abrasfi) um de seus principais clientes, Khair é radicalmente contrário a alterações na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Se alguma mudança vier seria para deixar a lei mais rígida. A LRF, para o especialista, é um instrumento de credibilidade e sua alteração afastaria investimentos do país. Para Khair, não se deve mudar algo que está dando certo, já que apenas três Estados (Rio Grande do Sul, Alagoas e São Paulo) e uma capital (São Paulo) dificilmente cumprirão os limites do enquadramento exigidos em abril de 2005. Diz que a mudança daria um "péssimo exemplo" para o resto do país que já adotou a LRF em sua cultura administrativa. Khair defende que a Prefeitura de São Paulo reserve 22% do orçamento para o pagamento da dívida, nove pontos a mais do que o previsto hoje para que esta não se torne "impagável". Mas tece críticas à "demagogia tributária" que se criou em relação às taxas da gestão Marta Suplicy e diz que José Serra dificilmente poderá abrir mão dessa receita. Filiado ao PT, o mestre em finanças públicas pela FGV, de 64 anos, não deixa de criticar a prevalência da política fiscal sobre a política monetária no governo federal: "Lula está fragilizando as contas do governo quando usa a taxa Selic para conter a inflação". Leia trechos da entrevista: Foto: Marisa Cauduro/Valor

Khair diz que as finanças muncipais melhoraram, mas SP preocupa: "Sem uma amortização maior, a dívida ficará impagável"

Valor: Os prefeitos que tomarem posse em 2005 vão assumir prefeituras financeiramente mais saudáveis do que seus antecessores? Amir Khair: Muito mais saudáveis. A LRF foi sancionada em maio de 2000 e pegou muitos prefeitos de "calça curta", porque já tinham começado a executar o orçamento. A lei veio num momento oportuno. Houve uma mudança radical no déficit orçamentário. Em 2000, muitos municípios já fecharam com superávit maior. Os prefeitos não se preocuparam tanto com a LRF quanto com a Lei dos Crimes Fiscais, que veio logo em seguida. As punições da LRF são banana, já a dos Crimes Fiscais prevêem perda de direitos políticos e cassação. A Lei dos Crimes Fiscais foi aprovada em outubro de 2000 e aí uns 500 prefeitos foram lá e pressionaram para adiar sua vigência. Os Tribunais de Contas entendiam que era muito difícil para os prefeitos resolver o problema em oito meses. Depois, passaram a ser mais rigorosos e os prefeitos e governadores começaram a se enquadrar. Há dois limites importantes na lei. Um é da dívida, o outro é de despesa pessoal. A dívida não afeta os municípios, é um problema dos Estados. Com raras exceções, os municípios se endividaram com títulos, emitiram e não controlaram. Os governantes têm uma inclinação pela realização de obras, não para pagar dívidas. Uns não se preocuparam em pagar, outros pagaram o mínimo. Valor: Por que São Paulo virou uma exceção entre os municípios?. Khair: Mais da metade da dívida é de juros. Quando Maluf e Marta falavam que o responsável pela dívida era Serra, tinham razão porque se referiam aos juros do governo FHC. Só que Maluf foi o iniciador desse processo. Emitiu títulos e jogou a dívida lá em cima. A dívida ruim, com uma taxa ruim, disparou. Pitta não pediu nenhum empréstimo e a dívida estourou por causa da Selic. Pitta assinou acordo em maio de 2000, com o governo federal. Nesse acordo, tinha uma cláusula que em 30 meses se podia fazer uma amortização extraordinária de 20% da dívida. Isso faria com que a taxa de juros continuasse em 6%. Se não se pagasse, ela pularia para 9%. Como a prefeitura tinha que pagar R$ 3 bilhões e não o fez, essa dívida passou de 200% da Receita Corrente Líquida (RCL) para 236%. Valor: Essa negociação de Pitta não piorou a situação da dívida paulistana? Naquela ocasião abriram-se duas exceções. Aprovou-se uma exceção para a prefeitura contratar um empréstimo do BNDES para os transportes e um empréstimo do BID, para revitalização do Centro. Pitta pensou que esse dinheiro seria para ele. Marta só foi pegar o dinheiro do BNDES em 2002. Do BID, Marta pegou uma parte, vai ter uma sobra para Serra. E isso vai continuar agravando o problema, se Serra pegar. Valor: O fato de 74% das dívidas dos municípios estarem nas mãos da oposição pode afetar a LRF? Khair: Não, o problema é isolado, não partidário. Só há uma capital endividada. A média de endividamento das capitais é de 30% da receita. São Paulo tem 233%. Dos Estados, há cinco, sendo dois - Rio e Minas - na tangente. O problema se concentra em Alagoas, no Rio Grande do Sul e no Estado e no município de São Paulo. Marta optou por não amortizar R$ 3 bilhões, o que realmente seria complicado. O mesmo problema Serra vai ter agora. Ou paga R$ 7 bilhões, ou implementa seu programa de governo. Valor: Se Serra pagar R$ 7 bilhões, os juros mudam? Khair: Não. Alguns tucanos dizem que Serra vai pedir para mudar os 9%, mudar o IGP-DI. Isso é casuísmo e não tem respaldo na lei. O artigo 35 da LRF proíbe a novação, que é mexer em qualquer cláusula de contrato que altere as condições. O problema é que, no fim de abril, Serra não vai ter os R$ 7 bilhões e poderá ficar inadimplente. Dessa forma, não poderá contratar operação de crédito e ficará proibido de receber transferências voluntárias a não ser nas áreas da educação, saúde e assistência social. No grosso, 90% das transferências voluntárias são para essas áreas. Essa proibição é pequena. O problema é a Lei dos Crimes Fiscais. Claro que nenhum tribunal condenaria Serra, que terá acabado de assumir a prefeitura. Valor: Se a punição ainda é incerta, por que Serra deveria pagar? Khair: Se não começar a amortizar a dívida ela ficará impagável. Essa amortização não consta no orçamento, o que é um fato grave. O orçamento prevê o pagamento de R$ 1,5 bilhão, sendo R$ 1,2 bilhão de juros e R$ 300 milhões de amortização. Exatamente os 13% do contrato de refinanciamento. Mas o orçamento tem que ter um espaço para redução da dívida e isso tem que ser colocado na discussão da Câmara de Vereadores. Se Serra e a Câmara não fizerem isso, a lei orçamentária vai ficar fictícia. Se o município continuar pagando 13% da dívida e se a receita crescer acima da inflação 4% ao ano, em 2016, estaremos 125 pontos acima do limite de 120%. Para resolver isso, ao invés dos 13%, teria que se reservar 22% do orçamento para saldar a dívida. Valor: Um ano a mais para pagar a dívida ajuda? Khair: Não é presidente Lula que resolve. O Senado não vai legislar por casuísmo. Perante a opinião pública, o país e o exterior, seria péssimo. Mostra que o país não tem seriedade. Valor: Mas o prazo já foi adiado uma vez. Khair: Foi e isso torna a situação pior. Foi adiado uma vez porque tinha uma questão geral, porque o IGP-DI descolou do IPCA e pegou todo mundo de surpresa. A LRF previa essa situação. É um péssimo exemplo caso se abra uma exceção. Valor: A prefeitura argumenta que tem porte de Estado, mas tem um limite de endividamento inferior. É uma reclamação justa? Khair: A cidade tem despesa e receita grandes. A LRF não fala do valor absoluto da dívida, mas do relativo. Não tem justificativa, é casuísmo. A prefeitura teve tempo para se acertar. A situação se agravou porque a taxa de juros pulou para 9%. Vai ter que colocar recurso para abater a dívida. Se não fizer isso vai ficar fora do limite e não tem como escapar do Judiciário. Valor: Serra fará uma gestão austera? Khair: Os tucanos vão cometer um erro se insistirem na troca do indexador. Serra falou corretamente no choque de custeio. Todo prefeito vai rever os os contratos da prefeitura e falar "vocês vão baixar esses preços". Alguns baixam mesmo. Com Erundina, fizemos isso e baixamos em 40%. A prefeitura deve ir atrás da dívida ativa e da venda de terrenos. Valor: Marta já não fez isso? Khair: Eles tentaram vender os terrenos, mas isso não é fácil. É um dinheiro simbólico. A gestão municipal está muito colada no crescimento da economia. Acho que vai crescer nos próximos anos 5%, por baixo, além da inflação. Quando a economia cresce 5%, a receita dos governos cresce 7%, porque os que não pagavam imposto, voltam a pagar. Serra vai ser ajudado por medidas de racionalização, de austeridade e um pouco por venda de patrimônio. O que não é correto é não cumprir a lei ou não se esforçar para cumpri-la. Senão a dívida vai ficar numa situação que nem o Senado vai poder ajudar. Valor: O investimento na gestão Marta cresceu de 3% para 9%. Aí também será feito um corte? Khair: O investimento cresceu por conta das operações de crédito, dos empréstimos. Não havia dinheiro e ela priorizou o renda mínima, por exemplo, que consome R$ 200 milhões. Ela subsidiou parte do transporte senão teria que aumentar a tarifa. Ambos são gastos de custeio. Foi uma opção política correta, mas não sobrou dinheiro para investimento além das operações de crédito. Valor: O corte nos cargos de confiança tem algum reflexo? Khair: O efeito é mais simbólico e político. Cortar os cargos de confiança da equipe anterior é normal, mas depois o prefeito coloca as pessoas de confiança dele. Do ponto de vista econômico, não é muito relevante. Valor: Serra poderá abrir mão de receita, como a taxa do lixo? Khair: Tem muita demagogia nas taxas. Tem que cobrá-las pelo custo real da prestação de serviço, senão sacrificará as pessoas que não usam o serviço e vão ter que pagar pelas que usam. Se quiser cortar as taxas como Serra falou, a LRF proíbe: Toda renúncia de receita tem que ser acompanhada de uma compensação, em receita. A LRF tenta coibir a "demagogia tributária". Valor: Como o sr. vê a pressão dos prefeitos por mudanças na LRF ? Khair: É uma onda que vem e vai. Depois eles próprios a defendem. Se um prefeito não tem a lei como defesa, expõe-se a administrar as heranças fiscais. A LRF poderia ser até mais draconiana pois não proíbe os restos a pagar. Se quiserem mexer só terão respaldo para melhorá-la, porque a lei foi assumida pela sociedade, pela mídia e na prática. Os municípios cumpriram o limite de despesa de pessoal. Valor: Esse enquadramento de pessoal sempre foi mais fácil que o do endividamento? Khair: A despesa de pessoal era ruim para os Estados, que estão enquadrados em 42% e antes tinham 65% a 70%. A lei conseguiu se viabilizar. Os que reclamam são minoria. Se derrubar ou flexibilizar essa lei, vai cair em descrédito. Ninguém vai querer colocar dinheiro aqui. Valor: Mudanças não passam? Khair: Não. Se fosse como no fim de 2002, quando o dólar se descolou e o IGP-DI, que corrige a dívida, subiu muito, aí se justificaria uma resolução do Senado. Os senadores deram 16 meses para se adaptar. O IGP-DI mudou um pouco. Os governadores se enquadraram, à exceção de São Paulo, Alagoas e Rio Grande do Sul. Minas e Rio estão praticamente enquadrados. Não se pode legislar para fazer um casuísmo para três. Ainda mais para o Estado e a cidade de São Paulo, os mais ricos. É um péssimo exemplo para os outros. Se o governo tiver que abrir mão dessa receita, tem que compensar com outra receita. Valor: Qual é a solução? Khair: O crescimento da economia, uma redução do custeio e venda de patrimônio vão ajudar, no caso paulistano. Ninguém vai exigir de Serra o pagamento de R$ 7 bilhões, mas ele vai ter que pagar mais de R$ 1,5 bilhão. Quanto? Ninguém sabe, mas estimo em nove pontos a mais, para manter o pagamento de juros. Valor: O orçamento enviado à Câmara não prevê isso. Khair: Não. E isso é grave. Não se vê essa discussão na Câmara. Ou se tem uma lei que se respeita e passa ser uma referência forte ou dá um jeito de driblá-la por uma circunstância. O problema não está na lei, está na execução e nas pessoas que se afastaram. Se a culpa é da Marta é uma questão que vai para debate público. Não vai mudar, fazer um casuísmo, porque uma pessoa fez uma coisa errada. Algum juiz pode achar que Marta é co-responsável. Mudar a lei para acomodar um casuísmo, em hipótese alguma. Valor: E no caso do governo do Estado? Khair: Alckmin não teria tanta dificuldade, porque a economia está crescendo. As receitas de ICMS do Estado estão crescendo muito. São Paulo estava em 223% em agosto; em dezembro, deve estar em 210%. Aí, se ficar um pouquinho acima, vai amortizar, mesmo porque ele não tem justificativa para não fazer pois no começo estava abaixo do limite. Valor: Não teria como rever o aumento dos os juros da prefeitura? Khair: Para prefeitura seria bom rever, mas isso mexeria não só nesse contrato, mas em todos. A repercussão disso é internacional. Não se teria segurança do contrato. Se isso acontecesse, o governo federal poderia devolver para todo mundo que pagou 9%. Impossível de ser feito. É por causa dessas questões que o governo nunca abre mão. Se mudar uma regra no meio do jogo, o contrato fica desacreditado. Serra vai pegar uma herança, como Marta pegou. Ninguém gosta de pagar. Se essa lógica prevalecer, ninguém vai querer emprestar mais. Valor: No FMI, Lula tenta mudar o cálculo do superávit primário para incluir os investimentos. Essa lógica não deveria valer para Estados e municípios endividados? Khair: A LRF não contempla isso. O FMI não vai ceder, seria um casuísmo. O governo federal deveria mudar a política fiscal, que acabou com Fernando Henrique. Essa subordinação da política fiscal à monetária arrasou FHC e está arrasando Lula. Lula está acertando muito mais que FHC na parte externa. Mas, na questão interna, o que está acabando com o equilíbrio fiscal com o uso da Selic para conter a inflação. Não se contém a inflação com a Selic, mas com a importação. Como o Brasil tem divisas, pode pagar o produto importado e aumentar a oferta de produtos para atender a demanda que está crescendo. Valor: As PPPs não vão ajudar a aumentar o investimento? Khair: Não serão as PPPs que vão resolver o problema do investimento, mas as empresas e o governo. O governo está tendo um investimento de R$ 7,7 bilhões esse ano. Um ponto de aumento na Selic é R$ 4,5 bilhões de perda, 60% de investimento. Se o FMI cria uma excepcionalidade não será só para o Brasil. Mas eles têm uma simpatia com o governo Lula, porque não esperavam que, de repente, Lula fosse defender os contratos, fazer o superávit primário sem o FMI pedir. Lula está dando um tiro no pé. Esse dinheiro da Selic é um dinheiro que sai dos pobres, do governo, e vai para os rentistas. É uma transferência de renda às avessas. O spread bancário está alto porque os bancos atuam em cartel. Para diminuir o spread, o governo tem que continuar deixando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal competir com os bancos privados. Lula está conseguindo segurar, por isso que está tendo desenvolvimento. Um exemplo disso é o crédito em consignação com desconto em folha tem taxa de 2%. FHC nunca ia pensar nisso. Pelo contrário, os teóricos querem acabar com BB, a CEF e o BNDES. Aí se perde o controle.