Título: O salário mínimo deveria aumentar em janeiro
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 19/12/2005, Opinião, p. A12

Um dos diversos problemas que apresenta o processo de elaboração orçamentária no Brasil é a definição do valor do salário mínimo (SM). Peço licença aos dois ou três leitores que têm a paciência de me acompanhar desde as primeiras colunas escritas neste espaço, por voltar a tratar de um assunto que já abordei aqui. A persistência do problema, contudo, justifica a insistência. Pode parecer uma questão de formalismo contábil, mas não é. É algo que diz respeito ao principal fator de variação da maior rubrica do orçamento, portanto a questão está longe de ser um simples detalhe. Nos países maduros, com economias estáveis e instituições já consolidadas, o Orçamento é aprovado pouco antes do começo do ano - gregoriano em alguns casos e fiscal em outros. Isso também ocorre no Brasil. A diferença é que, na grande maioria daqueles países, uma vez aprovado, o Orçamento passa a ser um dado pelos 12 meses seguintes. Já no Brasil, quanto exatamente será gasto na principal rubrica do Orçamento é uma incógnita. É claro que, em qualquer país, há uma certa margem de incerteza, pelo simples fato de que não se sabe com precisão absoluta quantos indivíduos terão que ser pagos, incerteza que é especialmente maior no caso dos aposentados. Toda previsão está sujeita a alguma margem de erro e quando se lida com milhões de pessoas - como é o caso do INSS, que paga benefícios a mais de 20 milhões de indivíduos - algum erro é inerente à projeção. Ou seja, o INSS sabe que todo ano morre um certo percentual de indivíduos e há outro percentual que se incorpora ao estoque de pessoas que recebe aposentadorias e pensões. Se porventura há uma superestimação do número de falecimentos e/ou uma subestimação do número de novos entrantes, o INSS não pode chegar para um contingente dessas pessoas e declarar que, infelizmente, não tem recursos para pagar: ele terá que "se virar" para obter junto ao Tesouro os recursos com os quais honrar o que é nem mais nem menos que um contrato social. Isso é algo perfeitamente normal, que ocorre em qualquer país, pelo simples fato de que nenhum ministro da Fazenda tem bola de cristal para saber de maneira exata variáveis em termos de números de indivíduos que se situam na casa de milhões de pessoas. O que é um problema sério é que, no Brasil, não se conhece sequer quanto terá que ser pago a cada indivíduo. Isso é como iniciar uma corrida de Fórmula 1 sem saber quantas voltas terá a prova e ter que planejar a estratégia no meio da corrida. Para que o leitor entenda a dimensão do problema, deve levar em consideração quatro elementos: 1) no Orçamento de 2006, o gasto primário do governo central está previsto em torno de 22% do PIB; 2) desses, em torno de 8%, ou seja, mais de 1/3 do gasto, está comprometido com a despesa de benefícios de aposentadoria e pensões do INSS; 3) além disso, há uma parte do gasto afetado pelo SM que é paga não pelo INSS e sim pelo Tesouro Nacional (por exemplo, os benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS), que somam em torno de 1% do PIB; e 4) o principal parâmetro determinante da dinâmica da evolução dessa despesa é a variação do SM: a cada 1% de aumento deste, há um incremento da despesa do INSS da ordem de 0,3% a 0,4%, associados ao fato de que dois de cada três aposentados e pensionistas recebem exatamente um SM por mês. O que é que tem ocorrido, tradicionalmente, no Brasil, especialmente em anos de realização de eleições? O governo envia uma proposta orçamentária ao Congresso Nacional em agosto para ser votada em dezembro e válida para o período janeiro/dezembro do ano seguinte. Nessa proposta, consta uma hipótese para o aumento do SM do ano seguinte, no mês de maio, que dependerá do comportamento da inflação até lá, bem como da força política do governo para fazer valer o seu ponto de vista. Nos anos FHC, o então deputado Paim (que tem andado muito calado nos últimos tempos) infernizava tradicionalmente a vida da liderança do governo todos os meses de abril. Agora chegou a vez da oposição fazer esse papel de cobrança e sempre pedir um valor do SM maior do que o governo de plantão estiver disposto a dar. Lembremos o que foi a batalha parlamentar de 2004 em torno do SM de R$ 260, só decidida em favor do governo aos 46 minutos do segundo tempo.

Orçamento é aprovado em dezembro, mas quando chega maio o valor da despesa pode ser acrescido de bilhões com o aumento do piso salarial

O resultado dessa prática é que se aprova o Orçamento em dezembro e, quando chega maio, dependendo da situação da época e da força política do governo no momento, o valor da despesa pode ser acrescido de alguns bilhões de reais, se a chamada "base aliada" (conceito esse cujo significado é difícil de precisar nos últimos tempos) não der conta do recado no plenário do Congresso. Não se pode dizer que essa seja uma boa prática orçamentária. E não falamos aqui do caso em que o próprio Executivo está ansioso por aumentar essa conta! A solução é fazer que o aumento anual do SM passe a ocorrer em janeiro, juntamente com o do funcionalismo. A justificativa para manter o aumento em maio é que essa seria uma tradição que vem desde a época de Getúlio Vargas. Há um quê de ridículo, porém, na justificativa. Primeiro, porque é difícil argumentar, por mais legítimo que seja o respeito às tradições, que mudar a data de reajuste da variável seja uma espécie de crime de lesa-pátria ou que os trabalhadores irão se levantar se a data de reajuste for antecipada em cinco meses. E segundo, porque nos anos FHC várias vezes o reajuste foi antecipado para abril e não ocorreu absolutamente nada, em que pese o "desrespeito" à tradição de aumentar o SM em 1 de maio (Dia do Trabalho). Sugere-se, em função desses argumentos, que o Orçamento de 2007, a ser encaminhado ao Congresso em agosto de 2006, preveja a mudança na data de reajuste do SM, antecipando-o para o mês de janeiro. Nesse caso, o Congresso aprovaria o Orçamento em dezembro e saberia com grande precisão qual seria a despesa do ano seguinte. Do jeito que o processo se dá hoje, a despesa do ano seguinte é uma incógnita!