Título: Fora de Focus
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 11/01/2006, Opinião, p. A11

Imaginemos a economia brasileira com uma taxa básica nominal de juros de 12% ao ano, taxa de câmbio de R$ 2,90 por dólar e exportações e importações na casa dos US$ 70 bilhões, gerando um superávit anual de US$ 7,5 bilhões. Pois bem: esses números que hoje parecem tão despropositados frente aos valores efetivamente observados (18%, R$/US$ 2,23, US$ 118 bilhões, US$ 75 bilhões e US$ 44 bilhões, respectivamente) são as medianas das expectativas para o final de 2005 declaradas pelo mercado há quatro anos, conforme registrado no Boletim Focus do Banco Central de 2 de janeiro de 2002. Diante disso, como interpretar as previsões para 2006 e anos seguintes, que estão sendo agora formuladas pelos agentes econômicos? Talvez o leitor considere que um período de quatro anos seja excessivo para o estabelecimento de previsões confiáveis para a economia brasileira. Mas esse não parece ser o caso, já que o Boletim Focus de 2 de janeiro de 2004, há apenas dois anos, portanto, fixava essas previsões em 13% ao ano para a Selic e R$/US$ 3,45 para a taxa de câmbio, por exemplo. Isso mostra que o principal problema com a formação de expectativas na economia brasileira não é a extensão cronológica do prazo em que se faz a previsão. Um cálculo simples mostra que o erro médio das previsões para juros, câmbio e comércio exterior ao final de 2005 feitas no início de 2004 foi maior do que o dessas mesmas previsões feitas no início de 2002. A possibilidade de formação de expectativas pelos agentes econômicos está subordinada à vigência de um estado de confiança no futuro, necessariamente subjetivo e por isso mesmo volátil. Enquanto esse estado de confiança perdurar, deverá ter lugar um comportamento convencional por parte dos agentes que, por assim dizer, são até certo ponto "cegos" diante das incertezas que possam interferir sobre as suas previsões de longo prazo. Keynes foi suficientemente enfático sobre a essencialidade da existência dessa "convenção" para possibilitar o cálculo das taxas de retornos dos investimentos e a tomada de decisão de alocação de recursos naquilo que envolva o longo prazo. Por essa razão, a possibilidade da ocorrência de eventos imprevisíveis, a chamada incerteza econômica, implica a necessidade de instituições. Em ambientes complexos, são as instituições que moldam as visões de mundo, as convenções de conduta, as percepções de oportunidades e a interação entre os agentes. Essas instituições, que podem ser normas de conduta, crenças, leis, organizações públicas etc., teriam as finalidades de estabelecer ou estabilizar comportamentos e de organizar as interações e a coordenação entre os diversos agentes econômicos.

Da forma como está, somente grandes tombos no nível de atividade fazem com que BC acelere queda de juros e devolva o câmbio ao nível normal

O fato é que as previsões do mercado e do governo sobre variáveis-chave da economia brasileira como câmbio, juros ou superávit comercial derraparam, e feio, pelo quarto ano consecutivo. E, pelo menos nos últimos dois anos, tanto no plano internacional quanto no doméstico, não houve qualquer evento que tenha perturbado de forma importante o funcionamento dos negócios. Na ausência desses fenômenos incertos, naturalmente as expectativas dos agentes deveriam se confirmar. Se isso não ocorre, é necessário buscar alguma anomalia no próprio mecanismo de formação das expectativas. Para a economia brasileira, são duas as possíveis origens para a grande margem de erro apresentada pelas previsões. Uma primeira origem está relacionada à estrutura da informação econômica disponível. Nessa interpretação, é possível que os mecanismos de formação de expectativas na economia brasileira funcionem de modo equivocado devido: 1) à inexistência de indicadores antecedentes confiáveis; 2) ao fato de que os formadores de opinião econômica no Brasil o fazem de forma enviesada porque são majoritariamente ligados a uma órbita financeira muito distante do mundo produtivo, devido ao pequeno peso do mercado acionário no mercado de capitais nacional, ou ainda 3) ao fato de o Brasil ser uma economia periférica, razão pela qual as variáveis internacionais relacionadas aos fluxos de mercadorias e capitais são pouco controláveis e apresentem, portanto, espectro muito amplo de flutuação. A outra origem para os grandes erros de previsão tem relação com a forma como a política econômica interfere na economia e, principalmente, como as autoridades econômicas sinalizam para os agentes os reais objetivos dessa intervenção. Nesse ponto talvez se encontre uma peculiaridade da gestão macroeconômica brasileira, que parece confundir gradualismo com estabilidade. O ponto aqui é que não pode haver estabilidade econômica sem previsibilidade das trajetórias futuras da economia. Como atestam os números já apresentados, o gradualismo, isto é, o processo em que variável de controle da economia - no sistema de metas de inflação brasileiro, a taxa básica de juros - é modificada para cima ou para baixo em doses homeopáticas, certamente não é suficiente e talvez sequer seja necessário para promover o imprescindível aumento da previsibilidade, essa sim o principal requisito para a estabilidade econômica. Erros de previsão tão elásticos com os que vêm ocorrendo nos últimos anos sugerem que as duas origens estão atuando de forma relevante. O que parece estar fora de foco é o próprio modelo da política econômica brasileira. Da forma como está, é preciso que a economia vá mal para que a política econômica vá bem. Explico: são necessários grandes tombos no nível de atividade para que o BC acelere o ritmo da queda dos juros e, com isso, ajude a devolver a taxa de câmbio aos seus níveis normais. Esse modelo condena o país a um processo de stop and go que, repetidamente, frustra as expectativas otimistas, normalmente tão desejáveis como difíceis de serem construídas, de que a economia finalmente vá deslanchar.