Título: O FMI e o Brasil
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 12/01/2006, Opinião, p. A11

Depois de amanhã, dia 14, o Brasil completará 60 anos de adesão formal ao quadro de países membros do Fundo Monetário Internacional (FMI). Foi desde o início, aliás, um ativo participante da organização daquele organismo. Ao longo de todo esse tempo, as mudanças ocorridas na economia, em todo o mundo, foram imensas. A ponto de não parecer absurdo o questionamento sobre qual é de fato a função do FMI nestas épocas de abundância de dólar, onde as dificuldades de financiamento dos desequilíbrios externos parecem pertencer a um longínquo passado. A decisão tomada recentemente pelo governo brasileiro de quitar antecipadamente seus compromissos com o Fundo seria impensável há poucos anos, quando o debate interno era tomado pelo fantasma dos efeitos da vulnerabilidade externa. O papel do FMI nesta situação de altíssimo risco é perfeitamente justificável: funciona como uma espécie de provedor de última instância dos países que sofrem ataques externos contra suas moedas. Isso vale para qualquer país. A Grã-Bretanha, como se recorda, sofreu em 1982 uma séria crise externa e teve de se valer da ajuda do Fundo como forma de aplacar os ataques contra a sua moeda, a libra esterlina. No mundo dos chamados "emergentes", porém, o uso daquele expediente tem sido bem mais constante. Diz-se que parte da explicação está no "pecado original", ou seja, na impossibilidade de aceitação da moeda local como meio de pagamento das obrigações externas. Resulta daí que o acesso ao dólar ou a outra moeda forte passa a ser vital para a manutenção do equilíbrio externo. A história do relacionamento do Brasil com o FMI daria um bom e suculento livro. Nem precisaria ir muito longe. Bastaria que começasse a ser contada a partir de 1982, quando estourou grande crise do endividamento com os bancos credores internacionais. No início daquele ano, o país anunciou uma moratória externa que não foi a primeira e não seria a última, mas teve um forte impacto nas finanças do país. Até hoje ainda é responsável em boa parte pela ainda alta taxa de risco do país. Houve muita discussão e ameaças. Finalmente, o Brasil assinou um acordo de financiamento externo com monitoramento do Fundo a partir de março de 1983 e duração de três anos. Nunca foi cumprido à risca. Tornaram-se famosas as freqüentes missões técnicas de fiscalização do Fundo ao país, personificadas na figura de Ana Maria Jul, uma representante do organismo internacional que sempre integrava as missões ao Brasil. Foi nessa época que o FMI aceitou a primeira inovação proposta pelo governo brasileiro com vistas à definição dos critérios de performance da economia: a incorporação do conceito de déficit público operacional, a partir da contabilização das necessidades de financiamento do setor público sem considerar o impacto da inflação, ou seja, das correções monetária e cambial nas contas do governo.

O Brasil não tem mais pendências com o Fundo, mas isso não quer dizer que não possa novamente recorrer a ele, para o bem ou para o mal

Mal aquele acordo com o FMI chegou ao fim - na verdade, esvaiu-se por inanição - o Brasil, já convivendo com o cruzado, declarou a segunda grande moratória externa aos bancos em meados de 1986, acompanhada de manifestações de total repúdio à figura do FMI. E assim passaram dois anos de total menosprezo pela possibilidade de apoio do Fundo, até que em meados de 1988 um novo acordo com aquele organismo foi celebrado. Teve efeitos praticamente nulos, pois não conseguiu recuperar a confiança externa no país. Aquele acordo estendeu-se aos trancos e barrancos até fevereiro de 1990. Foi enterrado definitivamente às vésperas do anúncio do Plano Collor, que confiscou parte da poupança interna, declarou guerra aos credores internacionais e dispensou qualquer tipo de ajuda do Fundo. No final de janeiro de 1992 o governo brasileiro celebrou novo acordo com o FMI, que teve a função apenas de dar respaldo ao acordo de reescalonamento da dívida do país com os credores do chamado Clube de Paris, onde se negocia a dívida comercial de longo prazo, tomada com aval das agências oficiais dos governos desenvolvidos. As metas estabelecidas com o Fundo também aqui jamais foram cumpridas e também esse acordo morreu de inanição. O capítulo talvez mais interessante do relacionamento do Brasil com o FMI seja o que envolveu a última reestruturação da dívida externa com os bancos credores, transformando definitivamente as obrigações tomadas na forma de empréstimos bancários em bônus de vários tipos, papéis que passaram a circular livremente no mercado internacional com pouso dos fundos de investimento. O país precisava do apoio do Fundo para que o Tesouro norte-americano pudesse emitir um título especial de longo prazo (30 anos) com objetivo de funcionar como aval aos bônus de prazo equivalente, negociados no acordo com os bancos. Mas a direção do FMI desta vez, cansada na certa das trapalhadas do governo brasileiro, recusou-se a avalizar a reestruturação da dívida externa. Na prática, o Fundo não quis dar apoio ao Plano Real que estava sendo esboçado em meados do segundo semestre de 1993. Resultado: o Brasil acabou firmando o mais definitivo acordo de renegociação com os credores privados sem o aval do FMI. Depois vieram as crises de 1998 e de 2002 que ainda estão na memória dos brasileiros. Nesse tempo todo, desde 1983, o Brasil fez uso de 41,290 bilhões de DES (direito especial de saque, a moeda do Fundo) de empréstimos do FMI, equivalentes a US$ 59,740 bilhões ao preço de ontem, de US$ 1,44688 por cada DES. Não temos mais pendências com o Fundo, mas não quer dizer que não tenhamos novamente de recorrer ao organismo, para o bem e para o mal.