Título: A falta de referência ética do Congresso Nacional
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2005, Opinião, p. A10

O Congresso historicamente oscila entre o corporativismo e o instinto de autopreservação. O corporativismo é a regra nos momentos de normalidade, onde as mazelas de parlamentares não estão expostas publicamente e nem é interessante que estejam, já que podem ser interpretadas como uso generalizado de práticas pouco "republicanas". O Legislativo evolui para a autopreservação em situações de exposição extrema, em que a omissão frente a erros de seus membros pode comprometer toda a instituição, e a reeleição da maior parte deles. Nesses casos, prevalece a tradição de oferecer cabeças à sanha da opinião pública. O momento da crise política que produziu estragos nos últimos dez meses é de tanta politização que o Congresso sequer se vê na obrigação de evoluir para o momento dramático e teatral, já vivido muitas vezes, de "cortar na própria carne". A absolvição do deputado Romeu Queiroz (PTB-MG) na semana passada, duas após a cassação de José Dirceu (PT-SP), mostra que a Câmara não se curvou a exigências éticas do eleitor que irá às urnas no próximo ano. Revela também que o referencial ético é elástico o suficiente para cassar parlamentares em processos que, sem provas, condenem por "falta de decoro parlamentar", e absolver outros que comprovadamente passaram pelo caixa do empresário Marcos Valério. O referencial varia a depender do interesse do momento, de acordos ou mesmo da maior ou menor simpatia que um processado possa despertar entre seus pares. Passados 20 dias, confirma-se a suspeita de que a cassação de José Dirceu, o ex-todo poderoso ministro de Lula e ex-implacável dirigente do PT, poderá ser a única satisfação que os parlamentares julgam dever à opinião pública. Indo aos fatos, e com algum senso de justiça, fica a eterna dúvida se a Câmara agiu legitimamente ao levar ao plenário um processo que não levantou provas da acusação feita a Dirceu - de ser o mentor do esquema do "mensalão" e responsável pela montagem de esquema de corrupção destinado a alimentar o partido. E é legítimo crer que o Legislativo cometeu um grave erro ao absolver Queiroz. Como a oposição insiste em dizer, os dois julgamentos foram feitos por um tribunal político - e se eles foram justos ou não, parece que isso não tem importância. Dirceu não foi pego na boca do caixa; as denúncias de que aliciou empresários ou banqueiros para dar dinheiro ao partido nunca tiveram comprovação material; sequer o tesoureiro Delúbio Soares, réu confesso do caixa 2 do PT, atribuiu ao ex-ministro participação no esquema. Queiroz confessou ter sacado das contas de Valério R$ 452 mil em "dinheiro não-contabilizado" - R$ 300 mil originários do PT e R$ 102 mil da Usiminas - para a campanha do PTB mineiro. A favor de si, disse que repassou tudo ao partido, para a campanha municipal. A partir de agora, irão a plenário mais onze processos contra deputados que comprovadamente sacaram do caixa 2 de Valério. Como o plenário da Câmara julgou que fazer caixa 2 no valor de R$ 402 mil não é crime, se isso for feito para custear campanha eleitoral, fica difícil imaginar outro desfecho que não a absolvição dos demais. Afinal, como cassar o Professor Luizinho (PT-SP), que se comprometeu por R$ 20 mil; ou o deputado João Paulo (PT-SP), que sacou R$ 50 mil; ou ainda o deputado Roberto Brant, que também recebeu dinheiro "não-contabilizado" da Usiminas? Trata-se de uma situação onde um deputado de R$ 402 mil pode ser absolvido e um de R$ 20 mil condenado, dependendo do momento, da radicalização ou da simpatia de cada um deles. A cassação de Dirceu e a absolvição de Queiroz foram dois precedentes perigosos. A cassação, porque o Congresso considerou que qualquer parlamentar é passível de ter o seu mandato interrompido, mesmo quando comissões de inquérito, Corregedoria e a Comissão de Ética não conseguem provas contra ele, por incompetência ou porque elas não existem mesmo - se elas não foram apresentadas ao público, essa última hipótese torna-se plausível. A absolvição de Queiroz é igualmente perigosa porque, na prática, ela legitima o uso político-eleitoral do caixa 2 que, em última instância, falseia o voto. A base aliada do governo votou em peso, inclusive o PT, para obter esse resultado. Se esse alinhamento de forças se repetir, o que parece quase certo, a Câmara se colocará claramente a favor de ilegalidades. Pior ainda: sem que aponte outra legislação adequada no lugar daquela que se contentam em fraudar.