Título: Muito barulho por nada*
Autor: Pedro de Camargo Neto
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2005, Opinião, p. A10

Espaço conquistado na OMC pela liderança brasileira não viabilizou nenhum progresso

Na Organização Mundial de Comércio (OMC), as decisões são tomadas por consenso. Consenso é um processo diferente. Estamos acostumados a decidir por maioria em nossa democracia, sociedades e mesmo em muitas decisões familiares. No consenso, qualquer um pode vetar um acordo. Sabemos que isto não é verdade na OMC. O Brasil, que não é pequeno, precisou de mais 20 países para vetar uma decisão que tentava ser imposta na reunião em Cancún em 2003. O fato de que alguns países desenvolvidos podem individualmente vetar o consenso, e fizeram isto por meio século com a questão agrícola, explica o atraso na liberalização do comércio internacional deste setor. Se tivéssemos negociado agricultura desde o início certamente teríamos regras multilaterais muito melhores do que as atuais. Quando se trabalha com consenso, é mais importante saber com clareza o que pode ser vetado do que alcançar tudo que se deseja. No processo de decisão por maioria, trabalha-se construindo uma posição que atenda aos interesses a serem obtidos. No consenso, uma grande maioria pode ainda ser vetada na OMC por um único país desenvolvido. O que criou o atual desequilíbrio da OMC foi os países desenvolvidos utilizarem com sucesso o veto, em particular para a questão agrícola, e a incapacidade dos países em desenvolvimento de vetarem temas, até mesmo para impor equilíbrio no avanço do conjunto de regras multilaterais. Se a questão agrícola pode ser vetada pelos Estados Unidos ou pela União Européia, como desenvolver equilíbrio nas regras multilaterais? Não é toda a questão agrícola que pode ser vetada pelos países desenvolvidos. Embora os negociadores possam até assim desejar, alguns pontos da questão do comércio agrícola têm amplo apoio na opinião pública dos países desenvolvidos. Impor vetos pode criar grande desgaste para o negociador. É preciso saber o que pode ou não ser vetado e o negociador ainda manter o apoio da sociedade. É preciso desgastar a posição do negociador perante a opinião pública de seus países em pontos de nosso interesse. Imaginar que é possível obter consenso para um grande avanço na abertura dos mercados agrícolas ou na eliminação de todos os subsídios é um equívoco. Certamente seria do interesse do Brasil, porém os negociadores tanto da União Européia como dos Estados Unidos sabem que contam com apoio em seus países para vetar grandes avanços de uma vez nesses temas. Na questão de acesso existem também inúmeros outros países que também são contra maior abertura. O passo que precisa ser construído na Rodada Doha é avançar o máximo que não possa ser vetado pelos países desenvolvidos. Na OMC, os passos serão, infelizmente, pequenos, mas precisam ocorrer sem perda de tempo e na direção correta. Na abertura de mercados, alguns avanços, menores do que gostaríamos, são possíveis. Não conseguiremos, porém, reduzir barreiras que coloquem em risco setores que contam com o apoio da sociedade para serem mantidos. Investir em uma maioria que provavelmente pode ser vetada não é o melhor caminho. O mesmo ocorre com a eliminação total de subsídios. É preciso mostrar que se tem capacidade de vetar um acordo que não avance um mínimo nesses temas. É preciso construir o acordo que os negociadores europeu e norte-americano tenham dificuldade de vetar, pois encontra apoio na opinião pública de seus países.

É preciso construir um acordo que, por ter o apoio da opinião pública, os negociadores americano e europeu não possam vetar

A eliminação dos subsídios na exportação é um desses temas. Exportações abaixo do custo de produção não encontram respaldo nos argumentos de segurança alimentar que sustentam a política agrícola dos países desenvolvidos. Um acordo que elimine o chamado dumping agrícola pode ser construído. Os Estados Unidos, porém, sustentam suas exportações com políticas que ainda equivocadamente são tratadas na OMC como políticas domésticas. O contencioso vitorioso do algodão mostrou com clareza que exportam abaixo do custo de produção, causando prejuízos aos países em desenvolvimento. Também a opinião pública norte-americana rejeita o chamado dumping, sendo muito desgastante seu negociador vetar por este motivo, até porque o dumping é proibido para exportações industriais. Na abertura de mercados existem importantes pontos que precisam ser ampliados. Demandas crescentes de consumidores por alguns produtos, pressões ambientais em processos produtivos, bem como barreiras que utilizam o escudo da imagem agrícola sem de fato sê-lo, podem representar um avanço pequeno mas significativo. A União Européia, reconhecidamente protecionista, é mesmo assim hoje o maior cliente da agricultura brasileira. A pequena abertura existente pode ser aumentada. A estratégia brasileira em Hong Kong foi o oposto do apresentado acima. Iniciou com uma ambição muito grande em acesso a mercados, que certamente seria vetada - como foi - e que dificilmente deixará de ser vetada em futuro próximo. No meio do caminho, atropelado pela forte reação européia de conseqüências ainda não totalmente compreendidas, tentou trabalhar outras alianças, perdendo foco na proposta original de prioridade em acesso a mercados. Em subsídios, não priorizou a questão do dumping. Trabalhou para obter uma data para a eliminação dos subsídios clássicos à exportação da União Européia. Havia antes, porém, os colocado em pé de guerra contra o Brasil, pela nossa excessiva ambição em acesso. No escudo da confusão os europeus se esconderam na questão do acesso a produtos não-agrícolas. A data de 2013 tem pouco significado. É muito tarde para muito pouco. O Brasil pouco ou nada trabalhou o efeito exportador das políticas domésticas norte-americanas, restringindo-se a elogiar uma oferta limitada e condicionada a avanços difíceis, senão impossíveis, em acesso a mercados. No algodão, onde era líder, pois responsável pela competência e coragem de um contencioso vitorioso e ainda não cumprido, teve uma atuação no mínimo tímida de apoio, se não omissa, tratando a questão como bilateral entre os EUA e os países africanos. Também aqui a data de 2006 não tem significado, pois representa a legislação no Congresso norte-americano, fruto do contencioso que o Brasil ignorou em Hong Kong. Impossível provar que outra estratégia atingiria melhores resultados. A utilizada, porém, atingiu resultado medíocre. O espaço conquistado pela liderança brasileira não viabilizou nenhum progresso.