Título: A verdadeira interdição do debate
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 21/12/2005, Brasil, p. A2

Muito se fala no Brasil da interdição do debate econômico. No passado recente, cunhou-se até uma expressão - "o pensamento único" - para designar esse suposto impedimento. Dizia-se que era proibido criticar as reformas liberalizantes que todos os governos pós-ditadura militar, sem exceção, promoveram. Depois, estendeu-se a mesma alegação para a atual política econômica que, a rigor, está em voga desde o início de 1999. Na verdade, o debate nunca esteve suspenso. A prova disso é que cinco governos em série (Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula), ao longo de 20 anos, não foram capazes de concluir o processo de modernização do país. Relutantes, setores da sociedade se manifestaram por meio do debate dito interditado, dos partidos políticos, dos lobbies no Congresso, da burocracia estatal. É verdade que nem todos esses governos se empenharam com afinco para derrotar a legião do atraso, cujo traço comum é uma arraigada cultura "patrimonialista". Por "patrimonialismo", palavra que não existe na língua portuguesa nem como neologismo, entende-se a arte de obter quinhões do Estado em detrimento da maioria. São privilégios, alguns herdados como dotes, que concentram renda e oportunidades nas mãos de poucos. No que diz respeito à política econômica, as críticas estão aí desde sempre. Nesse debate, há quem defenda o que no passado já não deu certo - que a taxa de juros seja fixada pelo Palácio do Planalto, que o país aceite conviver com uma "certa" inflação, que o câmbio seja artificialmente manipulado, que o governo gaste mais do que arrecade. Talvez resida no fracasso das experiências pregressas, e principalmente no horror que os brasileiros tomaram da inflação, a resistência do modelo atual, que, mesmo imperfeito, tem assegurado estabilidade à economia. Os debates interditados são outros. Está interditado o debate sobre o papel dos bancos públicos no Brasil. Apenas no âmbito federal, o governo detém quatro grandes bancos, além do BNDES. Ainda há justificativa, por exemplo, para que o quase bicentenário Banco do Brasil, que no mercado atua como um agressivo banco privado, permaneça sob controle do Estado? O que se sabe, e isso uma estudo do FMI comprovou, é que o sistema bancário brasileiro é oligopolizado, e que essa é uma das razões que impedem a diminuição dos juros indecentes cobrados de empresas e pessoas físicas. A falta de competição no sistema é agravada pelo fato de que apenas dois bancos estatais - Caixa Econômica Federal e BB - respondem por 35% dos ativos financeiros. Não chegou a hora de os governantes lidarem com esse velho e carcomido tabu? Não representa um risco manter estatais bancos que, administrados por políticos ou sob sua influência, podem gerar prejuízos bilionários para a sociedade? Ainda no tema privatização, chama a atenção outro debate interditado. Em 1998, o governo privatizou o Sistema Telebrás, mas o processo jamais foi concluído, porque a Telemar, justamente a maior das empresas de telefonia fixa, tem em seu capital participações direta e indireta de entidades estatais. Somadas, essas cotas superam 50% do capital. Interessa a quem, senão aos sócios privados da empresa, que o governo não privatize a participação do BNDES - 25% das ações com direito a voto - no capital da operadora? Fosse a Telemar uma companhia 100% privada, teria ela comprado uma empresa (a Gamecorp) do filho do presidente da República?

Política econômica é o foco das contendas

A interdição do debate é definitiva quando o assunto é o Sistema S (Sebrae, Senai, Sesc e assemelhados). O sistema é custeado por uma contribuição parafiscal - pagamento compulsório equivalente a até 5% da folha de pessoal das empresas. Não bastasse o fato de onerar o custo do trabalho no país, o Sistema S concorre de forma desleal com o orçamento do Ministério do Trabalho, responsável por programas de capacitação profissional. Na medida em que interessa diretamente ao setor privado a melhora da qualidade da mão-de-obra, não seria o caso de as empresas bancarem diretamente o funcionamento do Sistema S? Outro debate interditado diz respeito ao BNDES. Em 1998, quando assumiu o comando do banco, André Lara Resende, num pronunciamento memorável, declarou que o papel da instituição deveria ser o de ajudar as empresas durante a transição que a economia brasileira vivia, deixando de ser autárquica para se tornar de mercado. Ajudar significava contribuir para que as companhias ganhassem musculatura e pudessem competir num mercado nacional e internacional cada vez mais agressivo e integrado. De fato, de lá para cá, o BNDES ajudou o Brasil a forjar suas primeiras multinacionais. É fato, porém, que, permanecendo como única fonte de crédito de longo prazo, o banco no fundo é um óbice ao desenvolvimento do mercado de capitais no país. Que estímulo uma companhia tem para abrir seu capital, submeter-se às exigências do mercado e às regras de transparência, se pode, com mérito ou influência política, buscar um dinheirinho subsidiado no BNDES? Não se deve esquecer também que o Banco Central, para compensar o fato de que parte do sistema funciona com crédito direcionado (para agricultura e habitação) e juros subsidiados (dinheiro do BNDES), calibra a taxa de juros acima do normal para obter o efeito desejado na demanda. O secretário do Tesouro, Joaquim Levy, quase foi apedrejado nas ruas por tentar iniciar esse debate, típico da categoria "interditadíssimo". Há muitos outros debates proibidos no Brasil, envolvendo temas como a falsa progressividade do IR, a aposentadoria integral dos funcionários públicos, a cobrança do imposto sindical, a publicidade oficial (se os governos cumprem seu papel, por que fazer propaganda?), a abertura da economia (a quem interessa isolar o Brasil do mundo?), a existência dos cartórios. Quanto custa a interdição de todos esses debates e quem se beneficia dela? Uma indicação clara do banimento dessas questões é que nenhum dos pré-candidatos à Presidência tece considerações sobre elas. Preferem falar da elevada taxa de juros, do câmbio apreciado, do excesso de superávit primário.