Título: Divergências aumentam riscos para o Mercosul
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2006, Opinião, p. A8

O Mercosul corre o risco simultâneo de ganhar e perder membros. Enquanto ministros do governo uruguaio dizem em público que um acordo com os Estados Unidos é um bom caminho para o país - a consecução desse objetivo significa a saída do Uruguai do bloco - o governo brasileiro faz convite aberto para tornar a Bolívia, já sob o comando de Evo Morales, um membro efetivo. Se a adesão de Hugo Chávez atendia ao interesse do presidente venezuelano de fugir ao isolamento, o convite feito pelo chanceler Celso Amorim à Bolívia tem um sentido claramente político. Amorim deixou claro, em entrevista no dia 5 de janeiro, que seu gesto para Morales, que chega hoje ao Brasil, tem este sentido, ao passo que, para o ingresso de Chávez, além do fator político também contou o econômico. O objetivo em relação a Morales é o de "amortecer" a rejeição dos Estados Unidos ao líder dos plantadores de coca boliviano. O Brasil se coloca como intermediário para apaziguar o conflito, já que é hoje o país mais confiável e um dos poucos interlocutores do governo americano na região. O convite a Morales por motivos políticos por parte do Brasil era até certo ponto previsível, mas o desejo do Uruguai de se aproximar dos EUA, expresso pelos ministros da Economia, Danilo Astori, e o da Indústria, Jorge Lepra, foi de fato surpreendente. Ele marca uma inclinação inesperada do jovem governo socialista de Tabaré Vázquez de abandonar o Mercosul em prol das vantagens econômicas de um acordo com os EUA. Não é o primeiro indício de aproximação com os americanos. Vázquez, como candidato por uma frente que reunia ex-comunistas e ex-guerrilheiros, prometera rever o acordo de investimentos celebrado com os EUA no apagar das luzes do governo de Jorge Batlle. Já empossado, ratificou-o. Não há uma definição clara, porém, da posição uruguaia. Há membros do governo pressionando nesta direção, e uma oposição a ela igualmente intensa - como no governo Lula, onde há correntes que puxam em direções distintas. Também não há meio-termo nesta questão. Os EUA nunca aceitaram acordo do tipo 4 + 1 com o Mercosul, ao passo que tem tomado a iniciativa de acordos bilaterais com desenvoltura na região. Se aceitar, o Uruguai terá de se desligar do bloco. Há indícios claros de que enquanto o Mercosul aprofunda sua identidade política as relações econômicas entre seus membros, que deveriam lhe dar consistência, tendem a se deteriorar. Politicamente o que une Kirchner, Chávez, Lula e também Morales é uma política de independência em relação ao poder americano. Economicamente, sobram divergências. O Brasil vai engolindo pouco a pouco, mitigada, a proposta de salvaguardas feita pela Argentina, agora rebatizada de Cláusula de Adaptação Competitiva. Pelo acordo, seriam impostas sobretaxas de proteção toda vez que houver aumentos rápidos de importações, disparidade no crescimento econômico ou nas taxas de câmbio. Hoje, a Argentina cresce mais que o Brasil e seu câmbio se mantém desvalorizado em relação a seu vizinho graças a intervenções do BC, e nem por isso há invasão de produtos vindos do Sul. Isto é, a Argentina continua não sendo competitiva e por isto se apóia em uma barreira artificial, incompatível com os objetivos do Mercosul. Da mesma forma, o governo Kirchner não quer o livre comércio de automóveis no bloco e colocou no limbo a idéia. A Argentina se comporta cada vez mais como um país independente dentro do que deveria ser uma união aduaneira. Da mesma forma, Uruguai e Paraguai reclamam da hegemonia de Argentina e Brasil no bloco. O Mercosul mantém dupla cobrança da TEC de mercadorias importadas, em si um contra-senso, porque as receitas aduaneiras são vitais para a sobrevivência do Paraguai. A Venezuela, o mais novo membro, está em campanha aberta contra a Alca e potencialmente tende a se aliar a Kirchner contra a hegemonia brasileira, com a possível concordância de Evo Morales. Morales quer recomprar refinarias em mãos da Petrobras, reajustar para cima os preços do gás para o Brasil, depois de ter obtido, como líder político, uma forte elevação da taxação sobre o petróleo no país. O bloco ganha novos membros sem ter sequer aparado as profundas diferenças entre seus fundadores. Com isso, torna-se cada vez mais longínqua a possibilidade de que se consigam negociar, ou até mesmo tentar negociações, acordos necessários com a União Européia e com os Estados Unidos.