Título: Perdidos em alto mar
Autor: Guy de Jonquieres
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2006, Opinião, p. A9

Exposição à mídia transformou as reuniões da OMC em espetáculos contraproducentes

Três meses depois de a Organização Mundial do Comércio (OMC) ter deixado a cidade, Hong Kong retornou quase completamente ao normal. Resta apenas um resquício de contrariedade pela quebra da rotina, a decepção dos comerciantes pelas perdas nas vendas do Natal e a perplexidade popular sobre por que alguém desejaria ser o anfitrião de um evento desses. Parece que outras cidades já chegaram à resposta por si mesmas. Cientes dos distúrbios violentos ocorridos em Seattle em 1999, e dos protestos desordeiros em Hong Kong, elas dificilmente formarão filas para saudar o próximo encontro ministerial da OMC em 2007. Neste momento, o número de candidatos declarados é zero. Os únicos nomes ventilados são Kuait e Cingapura, este último sempre pronto a servir de substituto. Provavelmente não é nenhuma coincidência o fato de que ambos são regidos por governos autoritários com baixa tolerância para dissidências, quanto mais para perturbações da ordem pública. Tal é a reputação da OMC, de ímã para desordeiros, que os únicos anfitriões dispostos no futuro poderão ser países que, se não forem francamente repressivos, limitam a liberdade de expressão e os direitos democráticos. Essa possibilidade seria irônica se considerarmos que os arquitetos do sistema de comércio multilateral o conceberam como uma forma de promover sociedades livres. Se isso transformasse os encontros da OMC de enormes e desordeiros circos em ocasiões nas quais mais negócios pudessem ser fechados, porém, isso nem seria algo completamente ruim. Também estaria mais em harmonia com o que os fundadores do sistema tinham em mente. Poucos dos que se aglomeraram em torno do encontro de Hong Kong esperavam influenciar seriamente as negociações. Alguns lobistas do setor empresarial chegaram a questionar o motivo de estarem ali. Os agricultores sul-coreanos que promoviam tumultos nas ruas e muitas organizações não-governamentais tinham prioridades claras: chamar a atenção dos jornalistas, aproveitar oportunidades de aparecer nas fotografias e realizar acrobacias de relações públicas que seriam transmitidas para todo o mundo. Os negociadores estavam igualmente sedentos de publicidade. A primeira metade do encontro foi pautada por uma infindável seqüência de coletivas de imprensa, em cuja maioria os ministros simplesmente reafirmavam posições enraizadas e alfinetavam adversários. Somente nas 48 horas finais, quando um temor coletivo de fracasso tomou conta, eles realmente começaram a se empenhar. A degradação dos encontros da OMC, que se tornaram espetáculos de mídia canhestros, não é apenas inconveniente, é contraproducente. Negociações bem-sucedidas exigem decisões politicamente penosas que visam eliminar barreiras comerciais, que por sua vez incorrem na ira dos que se escondem por trás delas. Como já observou há tempos um veterano de várias rodadas de negociações sobre comércio, há fóruns em que governos conspiram em conjunto contra os interesses dos seus produtores nacionais.

Os ministros que negociavam em Hong Kong estavam sedentos de publicidade e só começaram a trabalhar quando o temor do fracasso foi maior

Antigamente, as negociações sobre o comércio eram conduzidas por alguns adultos em mútuo consenso por trás de portas fechadas, enquanto o mundo permanecia indiferente. Hoje, elas interessam a todos, estão estampadas em todas as telas de televisão, nos jornais e websites e alimentam campanhas de militantes. Os pedidos de transparência podem ter sido atendidos. O insignificante histórico de liberalização da OMC indica que o mesmo não aconteceu com a eficácia. É pouco provável que a exposição freqüente às câmeras de televisão torne os políticos mais propensos a desconsiderar eleitorados recalcitrantes em casa. Pelo contrário, ela aumenta a tentação de se curvar a eles em público, em nome da defesa do interesse nacional. Pode parecer estranho que um jornalista questione a abertura. Algumas decisões, contudo, são tomadas de melhor forma num ambiente de isolamento. Nenhum governo mantém reuniões ministeriais abertas. Ninguém argumenta seriamente contra a reunião fechada da diretoria do Banco Central dos EUA, ainda que as suas decisões certamente afetem a economia global com maior intensidade do que as da OMC. Um grau de privacidade oficial, por sua vez, também não significa ausência de prestação de contas ao público. Qualquer que seja o resultado que emergir da Rodada Doha de negociações sobre o comércio, ele será examinado minuciosamente pelos parlamentos de seus 149 membros. Se algum deles o considerar um mau negócio, ele estará morto. Se quisermos o avanço da liberalização global, os 50 países membros da OMC que geram a maioria do comércio mundial precisarão superar o jogo de cena e dedicar-se a negociações duras. Um local afastado das multidões poderá reduzir o risco de distrações. Se nenhum governo aceitar, talvez seja necessário pedir para que um navio cruzeiro sirva de anfitrião. Decerto não será a primeira vez em que negociadores do comércio mundial se verão perdidos em alto mar.