Título: Novo FED vs. a grande bolha
Autor: Luciano Coutinho
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2006, Opinião, p. A9

Tem sido notavelmente bem sucedida a operação conduzida pelo FED de elevação das taxas de juros de curto prazo nos últimos dezoito meses. Méritos inegáveis para a habilidade e a credibilidade do Dr. Alan Greenspan. A Federal Funds Rate, que havia sido derrubada para apenas 1% ao ano após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 (sendo mantida neste nível nominal durante quase dois anos, configurando uma taxa real negativa de cerca de 1%) veio sendo cuidadosa e progressivamente elevada para o nível atual de 4,25% ao ano. Essa subida da taxa de curto prazo, porém, não causou oscilações importantes nas taxas de referência de médio e longo prazo (respectivamente as taxas de remuneração dos treasuries de dois e de dez anos). Assim, a estrutura de termo da taxa de juros veio se tornando progressivamente "plana" (recentemente ficou até invertida na ponta de dois para dez anos). A confiança de que o FED sempre exercerá controle eficaz sobre a inflação e, por isso, a convenção instalada no mercado de que a inflação dos preços dos bens e serviços deixou de ser um problema, explica porque o prêmio temporal (adicional de juros que os investidores requerem para incorrer no risco de aplicar a prazos mais longos ao invés de adquirir títulos de curto prazo) praticamente se evaporou. Dispondo de alta liquidez pelo fato de contar com um amplo mercado secundário, os treasuries de dez anos têm, assim, concentrado a preferência dos investidores. Suas taxas de remuneração, que são a referência para o custo de capital nas decisões de investimento produtivo, têm oscilado entre 4,3% e 4,5% ao ano - uma taxa extremamente baixa e benigna em termos históricos. Esta notável estabilidade - favorável - dos juros de longo prazo nos EUA foi sem dúvida fator-chave da recuperação e da sustentação do crescimento da maior economia do planeta desde 2002. Sem dúvida, o significativo aumento dos gastos militares promovido pelo governo Bush, que converteu o superávit fiscal em um déficit de grande escala, também jogou um papel relevante. Mas, o juro baixo não só foi fundamental para mitigar o crash da Nasdaq e do Dow Jones na passagem de 2000 para 2001 como, posteriormente, funcionou como mola propulsora de um vigoroso boom imobiliário que vem perdurando até o presente. Dentre os efeitos positivos do juro baixo - e.g. queda da percepção de riscos, incentivo ao investimento produtivo e ao consumo de bens duráveis - o boom imobiliário parece ter sido a força estrutural mais importante no ciclo expansionista em curso. Ao valorizar exuberantemente o patrimônio imobiliário das famílias e das empresas (os preços dos imóveis subiram continuamente ao ritmo de 7% ao ano desde 2001 até alcançar uma taxa de 14% ao ano em meados do ano passado) o boom mais que compensou a perda de riqueza decorrente da deflação das bolsas. Dado o peso relevante dos ativos imobiliários na composição da riqueza (cerca de 30%) a emergência da bolha deflagrou uma aceleração de decisões de consumo e de endividamento privado que veio sendo dinamicamente realimentada nos últimos anos. O setor de construção e os bancos que operam o sistema de financiamento imobiliário reagiram, por sua vez, acelerando as atividades de construção e expandindo a oferta de financiamento e refinanciamento de imóveis com taxas de juros de longo prazo superfavoráveis. A oferta de novas unidades escalou de 1,4 milhão/ano para 2,1 milhão/ano, o volume de crédito imobiliário se expandiu velozmente (passou de 30% para 38% do total), a proporção de famílias proprietárias de imóveis subiu rapidamente (de 66% para 70% em apenas três anos) com forte aumento correspondente do endividamento.

Grande desafio de Bernanke será o de evitar o colapso do setor imobiliário, no caso de uma mudança de expectativas provocar uma alta nos juros

A estabilidade do juro de longo prazo em um patamar muito baixo foi fundamental para a potencialização deste processo, carregando consigo efeitos reais altamente favoráveis em termos de criação de empregos (a construção continua sendo intensiva em trabalho apesar os avanços das técnicas construtivas), de estímulo à demanda de insumos e de incentivos ao consumo - reforçados pelo continuado saque de recursos líquidos por parte das famílias mutuárias através de operações de refinanciamento dos imóveis (esses saques cresceram até alcançar um ápice de U$$ 160 bilhões em 2004). Não há muita dúvida, hoje, de que a bolha imobiliária chegou a um limite preocupante. Reconhece-se que estão presentes todos os indícios de uma bolha madura para implodir, a saber: 1) supervalorização dos preços (discute-se apenas a sua intensidade - de 15% a 35%); 2) nível de endividamento familiar e de comprometimento da renda com o serviço da dívida em pico histórico; 3) complacência e especulação dos agentes ante os riscos do processo, evidenciados de um lado pelo crédito ainda frouxo e com baixos requisitos de segurança e, de outro, pelo sentimento das pessoas de que os preços dos imóveis "jamais" cairão e; 4) continuidade da expansão da oferta de novas unidades em ritmo ainda acelerado apesar dos sinais de aumento do estoque de imóveis não comercializados (de 2004 para 2005 esse estoque passou de 4,6 para 6 meses equivalentes em termos de fluxo médio). O grande desafio que se antepõe a Ben Bernanke (o novo presidente do FED que assume no fim deste mês) será o de evitar nos próximos meses um colapso da bolha (o que seria desastroso para a economia mundial) se uma mudança inesperada de expectativas quanto à inflação provocar uma elevação significativa da taxa de juros de longo prazo e isso, em conseqüência, travar bruscamente a demanda por novos financiamentos imobiliários, provocando uma forte queda de preços. Para que a bolha possa murchar suavemente é preciso que a realidade venha a corroborar a expectativa recém-alimentada pela última Ata do FED, de que a inflação futura continuará perfeitamente sob controle de tal forma a manter a taxa de juros de longo prazo em nível confortável. A tarefa não será fácil, pois o custo do crédito imobiliário já vem subindo nos últimos 6 meses (de 5,8% para 6,2% a.a.) e a demanda dá sinais tênues de desaceleração. Atenção ao perigo!