Título: "Falta uma verdadeira estratégia social"
Autor: Sergio Lamucci
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2006, Especial, p. A10

Entrevista Para Paes de Barros, Bolsa-Família e salário-família reduzem mais a desigualdade do que elevar o mínimo

O economista Ricardo Paes de Barros procura dar a dimensão apropriada ao Bolsa-Família no momento em que o governo tenta transformá-lo na principal vitrine da política social e os críticos o tratam como uma prática meramente assistencialista. Coordenador de avaliação de políticas públicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ele diz que o Bolsa-Família chega a um número elevado de pessoas realmente pobres e teve um papel importante na redução da desigualdade em 2004, mas avalia que "um programa que gasta de R$ 6 bilhões a R$ 7 bilhões por ano não pode ser o carro-chefe de uma política social". Para um país em que os gastos sociais (com educação, saúde, previdência e outras transferências a pessoas) totalizam quase um quarto do PIB - o equivalente a cerca de R$ 470 bilhões -, R$ 6 bilhões a R$ 7 bilhões são um valor baixo. Para Paes de Barros, o grande desafio é fazer uma integração entre os diversos programas sociais, do qual o Bolsa-Família - que paga de R$ 15 a R$ 95 por mês para 8,7 milhões de famílias com renda mensal abaixo de R$ 100 per capita - pode ser a porta de entrada. O raciocínio é o de que não basta transferir dinheiro e cobrar algumas contrapartidas, como a freqüência escolar, para reduzir estruturalmente a pobreza: também é fundamental oferecer serviços sociais relacionados à educação, saúde, microcrédito, treinamento profissional e alfabetização. Paes de Barros também ataca o viés "pró-idoso e anticriança" da política social, que tem um exemplo eloqüente nos aumentos elevados do salário mínimo. Segundo ele, reajustar o salário mínimo ajuda a reduzir a pobreza e a desigualdade, mas a questão é que há outras maneiras mais eficientes de fazer isso - como aumentar o salário-família (pago pela Previdência a trabalhadores que ganham até R$ 623, para ajudar a sustentar filhos de 0 a 14 anos) ou o próprio Bolsa-Família. A seguir, os principais trechos da entrevista de Paes de Barros, engenheiro pelo Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA), mestre em matemática pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e doutor em economia pela Universidade de Chicago. Conhecido como PB, é um dos maiores especialistas em política social do país.

Valor: Como o sr. avalia a política social do governo Lula, que parece apostar no Bolsa-Família como o grande carro-chefe? Ricardo Paes de Barros: O Bolsa-Família é importante, mas um programa em que você gasta R$ 6 bilhões ou R$ 7 bilhões por ano não pode ser o carro-chefe de uma política social. Com base numa visão de longo prazo e levando em conta a experiência de outros países, eu diria que o que mais faltou a esse governo foi levar com mais força a questão da integração das políticas sociais.

Valor: A unificação do Bolsa-Escola, Auxílio-Gás, Bolsa-Alimentação e Cartão-Alimentação no Bolsa-Família não vai nesse sentido? Paes de Barros: O governo unificou programas iguais. Isso é ótimo e é muito melhor do que o que havia antes. Mas a integração é uma coisa muito mais profunda do que isso. A integração é indicar um programa de alfabetização quando se descobre que a pessoa, além de pobre, é analfabeta. Se é um camponês que necessita de crédito, é dar acesso ao Pronaf. Quando você dá o Bolsa-Família, essa é a porta de entrada para a política social. Nós damos o Bolsa-Família, mas não o acesso prioritário a uma centena de programas sociais que poderiam melhorar a vida das pessoas.

Valor: Essa integração depende de uma mudança gerencial ou de um aumento de recursos? Paes de Barros: É fundamentalmente uma coisa gerencial. Dado que existem os agentes comunitários de saúde, nós podemos chegar a isso se nós conseguirmos transformá-los em agentes sociais num sentido mais amplo, mas mantendo o programa Saúde da Família. É um problema muito mais logístico e organizacional, que envolve vários ministérios. Seria um grande exemplo para qualquer governo que viesse depois. E dá para fazer.

Valor: Qual o passo na direção correta que o governo deu na política social? Paes de Barros: A resposta é difícil, porque não há muita coisa nova. Talvez o passo mais certo foi respeitar tudo de bom que estava sendo feito antes. Eu não colocaria o Bolsa-Família como sendo uma coisa tremendamente inovadora ou sensacional. É um programa muito importante, que pode ser o ponto de partida dessa integração.

Valor: O Bolsa-família exige contrapartidas, como a freqüência escolar. Mas, como a qualidade da educação em muito lugares é ruim, não há o risco de o programa não reduzir de forma estrutural a pobreza, tornando-se assistencialista?

É importante que o Bolsa-Família não seja só uma transferência de dinheiro, mas uma linha direta do pobre com a política social

Paes de Barros: Risco certamente há, depende de como se vai administrar isso e como o programa vai evoluir. O futuro de um programa como o Bolsa-Família depende de uma oferta de serviços sociais em quantidade e qualidade adequadas, como educação, saúde, microcrédito, treinamento profissional, alfabetização, tudo integrado. O Bolsa-Família é uma maneira de o governo chegar à casa da família e dizer: eu vim te ajudar. Aqui estão os recursos para aliviar um pouco a pobreza, mas vamos falar sério e ver como eu tiro você da pobreza. Para isso, é necessário oferecer verdadeiras oportunidades para as pessoas.

Valor: Isso está ocorrendo em alguma medida? Paes de Barros: Há dois problemas aí. Se não há esses programas na área, não há como andar para frente. Se eles não existem, o mais indicado é segurar um pouco o Bolsa-Família, criar os programas na área e depois anda com o Bolsa-Família. Vamos supor que Bolsa-Família está numa área em que a escola não está muito boa e o centro de saúde não está bom. Eu faria o seguinte: segurar o Bolsa-Família, não aumentar a cobertura, não aumentar o benefício e melhorar a escola e o posto de saúde. O Bolsa-Família é um programa para você se enganchar na política social, para aproveitar as oportunidades. Outro problema é que, às vezes, em algumas áreas, existem oportunidades, mas elas estão desarticuladas. Vamos pegar o município do Rio de Janeiro. O sujeito recebe o Bolsa-Família numa cidade em que há uma grande oferta de programas municipais, estaduais, federais e de várias ONGs. Se ao mesmo tempo essa pessoa for conectada a esses programas, você vai tirá-la da pobreza. É importante que o Bolsa-Família não seja apenas uma transferência de dinheiro, mas uma linha direta do pobre com a política social. Hoje, nós temos até dificuldade de cobrar as condicionalidades do Bolsa-Família. Suponha que uma criança não esteja atendendo as condicionalidades. Isso apita uma luz em Brasília. Mas o que eu faço? Eu não sei por que ela não atendeu as condicionalidades. Ela pode não ter ido à escola porque a mãe está doente e ela ficou em casa para cuidar dos irmãos mais novos. Essa é uma família que precisa de mais apoio naquele momento, você vai e corta o benefício? Cobrar condicionalidades, que é fundamental, num ambiente em que não há conexão direta, fica complicado.

Valor: Como resolver a questão? Paes de Barros: O sistema hoje é frio. Ele informa que aquela família não está cumprindo as condicionalidades, mas não diz por que ela não está cumprindo. Você precisa na ponta de um agente que vá à casa da família, que seja um torcedor e um cobrador. Mas para isso é necessário um contato mais pessoal. O ponto é o seguinte: nós já temos 150 mil agentes comunitários por aí.

Valor: Esse número é suficiente? Paes de Barros: A cobertura que nós temos do agente comunitário pega praticamente todas as famílias pobres do Brasil. O Saúde da Família cobre muito mais do que as 11 milhões de famílias que podem receber o Bolsa Família no ano que vem. Mas, se para acabar com a pobreza, você tiver que contratar mais algumas pessoas lá na ponta, para dar atendimento a essas famílias pobres, é lucro. Você está gerando emprego, e emprego extremamente produtivo, e o custo disso é muito pequeno.

Valor: Uma de suas preocupações é a seleção das famílias. A do Bolsa-Família é bem feita? Paes de Barros: Nós não sabemos isso tão bem como deveríamos saber. Com o suplemento da PNAD de 2004, que deve sair em março, vai dar para saber exatamente quantas pessoas que recebem o Bolsa-Família não são pobres e quantas que são pobres e não recebem o benefício. O que nós sabemos é com base na pesquisa de orçamento familiar (POF) de 2003, que vale para o Bolsa-Escola e o Auxílio-Gás. Nesses programas, há uma parcela da população que não é pobre e está lá. Mas, de todos os programas sociais brasileiros que nós analisamos, não há nenhum que chegue perto de ter um grau de focalização tão bom quanto o Bolsa-Escola. Isso não quer dizer que não haja uns 20% a 25% que, stricto sensu, não se enquadram no padrão de beneficiário que devia ser, com renda mensal inferior a R$ 100. Com a PNAD de 2004 será possível saber quais são os números para o Bolsa-Família, que deve ser cerca de 20%, na melhor das hipóteses 15%.

Valor: Mas 20% a 25% não é um número alto? Paes de Barros: Isso não apenas está dentro dos padrões internacionais como é muito melhor do que os outros programas sociais brasileiros, como a previdência rural, auxílio-doença, vale-transporte, PIS-Pasep, seguro-desemprego. É um número razoável, mas dá para melhorar isso. Há mil coisas que se pode fazer para melhorar isso, começando pelo Cadastro Único. Nós temos que melhorar o cadastro e abandonar a idéia de selecionar apenas com base na renda reportada, porque a renda é uma variável muito volátil. É importante adotar vários indicadores de pobreza, como a qualidade de habitação, se há água e esgoto, o material de construção da casa, a educação do chefe de família, a posse de bens duráveis, que não estão no cadastro, mas que você poderia colocar.

Valor: A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) mostrou uma redução razoável da desigualdade em 2004, quando o PIB cresceu 4,9%, houve aumento do salário mínimo e o Bolsa-Família atendeu a um número maior de pessoas. Qual desses fatores teve mais peso na redução da pobreza? Paes de Barros: A resposta para a pobreza e para a extrema pobreza é um pouco diferente. Para os pobres, o crescimento explica metade da redução da pobreza. A outra metade veio da redução da desigualdade. Para os extremamente pobres, um quarto veio do crescimento e três quartos da redução da desigualdade. Acho que a contribuição do salário mínimo foi relativamente pequena. O Bolsa-Família certamente teve uma contribuição. Dos 10% mais pobres, cerca de 5% tinham acesso a essa fonte de renda em 1999. Hoje, 60% dos 10% mais pobres têm acesso a essa fonte de renda. Foi um aumento de cobertura fantástico. É uma fonte de renda a que 60% dos 10% mais pobres têm acesso. Está bem focalizado, mas, mais do que isso, tem alta cobertura, pois não apenas chega aos pobres, mas a uma grande proporção de pobres. Nós temos simulações de que de 15% a 25% da redução da desigualdade veio dessa fonte de renda.

Valor: O governo planeja promover mais um aumento real elevado do salário mínimo em 2006. É válido insistir nisso como estratégia de redução da desigualdade?

Não há solução de longo prazo para o problema da pobreza no Brasil que não envolva o crescimento

Paes de Barros: Aumentar o salário mínimo certamente vai reduzir a desigualdade e a pobreza. Mas há umas cinco ou seis coisas que você poderia fazer com o dinheiro que seriam muito mais produtivas do ponto de vista de reduzir pobreza e desigualdade.

Valor: Dê alguns exemplos. Paes de Barros: A primeira e imediata seria aumentar o salário-família, em vez do salário mínimo. Enquanto apenas 3% das famílias extremamente pobres têm um idoso, 85% dessas famílias têm uma criança. A questão é conseguir fazer com que o gasto chegue onde tem criança. Uma maneira é aumentar o salário-família. Isso certamente vai ser muito mais eficiente. Se você aumentar o Bolsa-Família, vai ser mais eficiente ainda, pois o salário-família atinge apenas quem está no setor formal. O Bolsa-Família pega quem está no formal e no informal.

Valor: O Brasil gasta pouco com políticas sociais ou o problema é de ineficiência dos gastos? Paes de Barros: Eu não conheço nenhum estudo que consiga mostrar que o Brasil gaste pouco em comparação com países com renda per capita semelhante à brasileira. O problema das estatísticas de gastos sociais no Brasil é que elas são dramaticamente afetadas pela Previdência. Há uma parte que não são gastos sociais, porque se referem a pagamentos de aposentadorias a pessoas que contribuíram para recebê-las. Se você pegar as estatísticas da Cepal, o Brasil é o segundo ou terceiro país da América Latina com a maior proporção do PIB dedicada a gastos sociais, um pouco mais de 20% do PIB. A questão é que isso inclui a Previdência. Se você olhar os gastos com educação e saúde, o Brasil gasta 4% a 5% do PIB em cada uma dessas áreas, o que está muito próximo do que é típico de países com renda per capita igual à brasileira. Mas, dado o gigantesco atraso educacional brasileiro, com 4% do PIB não dá para fazer uma grande arrancada no setor. Se a idéia é alinhar o Brasil com a Coréia do Sul, não dá para fazer com 4% do PIB. Além disso, nós precisaríamos usar muito melhor os recursos que nós temos.

Valor: Que países têm experiências em política social em que o Brasil poderia se espelhar? Paes de Barros: O exemplo de política social na América Latina evidentemente é o Chile. O Chile é o modelo inclusive na questão da integração das políticas sociais que eu mencionei, eles já fazem com sucesso, resolveram todos os problemas logísticos e estão lá prontos para transferir toda a tecnologia necessária para fazer isso. O México, por sua vez, fez uma coisa importante quando criou um gabinete social. Eles juntam todos os ministros e têm um chefe, que é um dos ministros, que muda a um período de tempo. Todos os ministros construíram uma única estratégia, que tem programas de todos os ministérios. O que falta no Brasil na área social é uma lógica integrada para a política social, que defina exatamente para onde nós estamos querendo ir com todos esses programas sociais. A gente pode discordar da política econômica, mas há um rumo, que pode estar certo ou errado, mas há uma lógica. Na política social, falta uma proposta para o país que mostre onde nós estamos na área social, para onde nós vamos, que instrumentos nós temos, quanto tempo isso vai levar, 15 anos, 20 anos. Nós não temos uma verdadeira estratégia social.

Valor: O Brasil cresceu 2,4% ao ano entre 1995 e 2004, um ritmo muito baixo para um país emergente. Esse crescimento medíocre não reduz o impacto da política social, por mais eficiente que ela seja? Paes de Barros: Sem dúvida. A principal função da política social é dar a oportunidade para as pessoas adquirirem certas habilidades. Se depois elas não têm oportunidades de usar essas habilidades, vira Cuba. Você me perguntou se há alguém que tem uma política social invejável. Talvez Cuba tenha. Mas é uma política social jogada num ambiente econômico estagnado. Não adianta treinar as pessoas e dar saúde se não há oportunidade para usarem o que aprenderam e adquiriram. Não há solução de longo prazo para o problema da pobreza no Brasil que não envolva o crescimento.

Valor: Numa economia que cresce com força, uma política como o Bolsa-Família vira coadjuvante? Paes de Barros: Tudo o que um país quer na vida é que o Bolsa-Família seja um coadjuvante. O fundamental para reduzir a pobreza é aumentar a produtividade das pessoas, a escolaridade das pessoas, assim por diante. O Bolsa-Família é tão importante porque o país nunca teve uma rede de proteção que realmente protegesse os mais pobres. Mas não há como aumentar todo o ano o Bolsa-Família. Os pobres vão diminuir ao longo do tempo e no fundo você quer que o Bolsa-Família seja um coadjuvante.

Valor: Quais são os grandes desafios para a política social? Paes de Barros: É fundamental buscar a integração e ter uma verdadeira política social. O Bolsa-Família nunca vai ser o que ele poderia ser se não houver essa integração na ponta. Ele é estranho nesse sentido, porque identificou o pobre, mas perdeu o contato com ele. E outro ponto fundamental é reverter o viés pró-idoso e anticriança da política social, que faz uma gigantesca ineqüidade intergeracional. Nós beneficiamos enormemente a população idosa e damos relativamente pouca atenção às crianças. Quando você aumenta muito o salário mínimo, acentua isso. É necessário resolver a questão do salário mínimo de uma vez para sempre, vinculando o aumento ao crescimento do PIB, do PIB por idoso ou do PIB per capita. Resolvido isso, vamos ver como se mobilizam recursos para crianças, principalmente de zero a seis anos.