Título: Rodada da OMC evita por pouco um novo fracasso
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Fonte: Valor Econômico, 21/12/2005, Opinião, p. A10

A Rodada de Doha corria o risco de um majestoso fiasco na reunião de Hong Kong e escapou dele por um fio. Seis dias de reunião produziram avanços milimétricos, mesmo diante da baixa ambição que vem marcando as negociações. A avaliação do comissário da União Européia para o Comércio, Peter Mandelson, resumiu bem o resultado do encontro: "Não foi o suficiente para um verdadeiro sucesso, mas o bastante para salvá-lo do fracasso". A garantia de continuidade da rodada foi dada pela fixação da data para o fim dos subsídios à exportação agrícola em 2013. Mesmo que neste ano termine a Política Agrícola Comum da UE, os europeus ainda assim batalharam para que o assentimento viesse acompanhado de concessões dos países em desenvolvimento e dos EUA. A manobra foi rejeitada amplamente e a UE ainda teve de engolir o fim desse subsídios para alguns produtos, que não estão definidos, em 2010. Os subsídios à exportação dados pela UE são apenas uma gota no mar de incentivos oferecidos a seus agricultores - 3 bilhões de euros de um total de 61,2 bilhões de euros. A outra muleta que permitiu que as negociações continuem andando foi a concordância dos países industrializados em conceder acesso livre de tarifas e cotas para 97% dos produtos exportados pelos países mais pobres do mundo. Boa parte desses países, insatisfeitos com os rumos da rodada, bandearam-se em Hong Kong para posições defendidas pelo G-20. Nos demais pontos não se saiu do lugar e propostas perigosas, que foram bloqueadas em discussões anteriores, reapareceram ampliadas e correm o risco de vingar. Era intenção da UE criar, além da série aparentemente infinita de obstáculos para impedir o desmantelamento de seu sistema protecionista agrícola, a figura das salvaguardas especiais, toda vez que houvesse aumentos significativos de importações. Os europeus não ganharam esta parada, mas os países em desenvolvimento obtiveram sinal verde para criá-las não apenas para conter importações, mas para deter os efeitos de variações de preços, como queda das cotações mundiais. Se passar pelo crivo da rodada, os efeitos dessas salvaguardas serão perversos e atingirão também o Brasil, que está dividido sobre a conveniência desse mecanismo. O país já obtém mais da metade de suas receitas de exportação agrícola com as nações em desenvolvimento e pode ver alguns mercados se fecharem para seus produtos. Os ministros reunidos em Hong Kong não avançaram em nada para desenredar a rodada de seus principais problemas, a começar pelo acesso a mercados e os subsídios internos à produção agrícola. A UE sustenta a necessidade de manter uma enorme gama de produtos sensíveis, para os quais haveria cotas - 8% de suas posições tarifárias -, e não concorda com um corte superior a 46% na média (39% na prática). Brasil e EUA propõem índices maiores para a redução, mas, mesmo com eventuais concessões dos europeus, dificilmente se chegará ao nível ideal. Segundo estudo do FMI, um corte de 75% reduziria a proteção doméstica em apenas quatro economias, EUA e UE inclusive. O que o encontro ratificou é o que vem ocorrendo na prática, a exigência do "paralelismo" entre as negociações para liberalizar o comércio agrícola e as que envolvem produtos industriais e os serviços. Quanto ao apoio interno, a declaração de Hong Kong aponta a necessidade de "cortes efetivos" no apoio interno à agricultura. Tanto no front das tarifas agrícolas como no das industriais, os países em desenvolvimento fariam cortes menores. Esse é um obstáculo para a liberalização em geral. Quarenta por cento do comércio dos países em desenvolvimento é feito com seus semelhantes e as tarifas consolidadas na OMC são, na prática, até seis vezes superiores às efetivamente praticadas. Há o risco de se manter intacto o protecionismo nessas nações, impedindo que os benefícios com a ampliação do comércio possam ser plenamente usufruídos. A rodada de Doha levará, assim, mais tempo para sua conclusão do que o previsto - sua antecessora, a do Uruguai, porém, consumiu oito anos. Após apostar acertadamente todas suas fichas nas negociações globais, é recomendável então que o Brasil retome as discussões dos acordos bilaterais ou multilaterais com a União Européia e a Alca e impeça que o impasse na OMC traga um perigoso vácuo em sua agenda comercial.