Título: Reflexões sobre as nossas instituições severinas - 5
Autor: Cláudio Gonçalves Couto
Fonte: Valor Econômico, 16/01/2006, Política, p. A6

As falas de Severino Cavalcanti marcaram sua passagem pela Câmara dos Deputados. Nelas, substituiu a hipocrisia pela desfaçatez. A substituição (depois elevada aos píncaros por Roberto Jefferson, com muito mais sofisticação) foi, mais do que qualquer outra coisa, o que tanto consternou a opinião pública brasileira durante sua bisonha gestão à frente da Câmara baixa - adjetivo que nunca fora tão apropriado a essa casa do Congresso. Guindado à Presidência da Câmara, Severino não era mais apenas um papagaio de pirata, protagonista de discurso ridículo na posse do presidente Lula - na ocasião, lembre-se, quebrou o protocolo, colocando-se no centro do palco, comparando-se ao novo chefe de Estado com base no fato de ser também ele oriundo do interior de Pernambuco. Embora se tenha tornado a segunda figura na sucessão presidencial, não percebera que já não era mais possível comportar-se como chefete do baixo-clero e distribuidor de prebendas num lugarejo remoto, mandando de desmandando, fazendo exigências descabidas e como que dizendo à opinião pública, chocada com sua desfaçatez: "É isso mesmo. Se não gostou, ´pobrema´ seu." A audácia custou-lhe a cabeça. Ao chamar muita atenção para suas presepadas, sobretudo no ambiente hostil criado por Roberto Jefferson, Severino tornou-se alvo óbvio para os desafetos. Chave para entender a queda de Severino é sua exposição na mídia. Enquanto era notado como pequena aberração congressual do baixo clero, volta e meia ameaçando com uma greve parlamentar por maiores salários, o deputado não passava de uma esquisitice. Ao ganhar holofotes, tornou-se inoportuno e intolerável. Conseqüentemente, foi responsabilizado por sua insensatez e, sobretudo, pela desfaçatez. Temos aí a pista para compreender um aspecto central do funcionamento de nossas instituições parlamentares - mormente do Congresso Nacional. A atual convocação extraordinária, em função da qual deputados e senadores recebem o mensalão legalizado de R$ 25.000, mostra que Severino Cavalcanti não foi uma exceção, mas um emblema do Congresso Nacional. Sua diferença em relação ao grosso de seus pares é que não foi hipócrita, apenas desavergonhado. Uma pressão inaudita dos órgãos de imprensa tem-se dado sobre o Congresso. Vários deles - como a Rede Globo - divulgam diariamente a lista dos parlamentares que abriram mão do pagamento extra, seja devolvendo recursos ao erário - o mais adequado -, seja fazendo doações a instituições filantrópicas (http://jg.globo.com).

Individualizar cobrança para controlar o Congresso

Ainda assim, é assombrosa a resistência da maioria dos legisladores em abrir mão do emolumento. Até a sexta-feira, 13 de janeiro, apenas 79 deputados (15% da Câmara baixa) e 5 senadores (míseros 6% do altíssimo clero parlamentar) haviam renunciado ao mensalão legalizado. Notem que dentre os parlamentares que abriram mão da dinheirama, alguns o fizeram transferindo recursos para instituições mantidas por seus parentes ou das quais eles próprios são membros eminentes, como o deputado que doou seu salário para a Igreja Universal do Reino de Deus, da qual é um presbítero. Houve quem apenas renunciasse ao emolumento na última semana, alegando que só então ia a Brasília para tomar providências, tanto tempo após o início da convocação. Difícil saber o que é pior. Alguns não abriram mão do dinheiro, alegando que fazê-lo seria "demagogia"; como não são demagogos, locupletam-se. Ainda, dentre os que preferiram embolsar os recursos figuram parlamentares que se vendem ao eleitorado como defensores da ética, da moralidade pública e da justiça social. Optaram pela hipocrisia, decerto perderão votos e apoio dentre os eleitores mais bem-informados e atentos; mais ainda: serão cobrados publicamente pela traição. O lucrativo e sorrateiro silêncio dos parlamentares se explica em função da percepção, em boa medida correta, que têm eles acerca das atenções que obtêm do eleitorado. Muitos, como Severino, sabem que sua eleição depende das prebendas que distribuem ao eleitor, assim como do financiamento de suas campanhas por esquemas valerianos. Portanto, não se incomodam com cobranças e com a supervisão da mídia. Contudo, a gestão de Severino e o escândalo do mensalão transformaram o comportamento recente de vários órgãos de imprensa em relação ao Congresso. Mudaram a intensidade da cobertura, assim como sua qualidade. Nota-se uma maior individualização de responsabilidades, dando-se aos cidadãos mais instrumentos para identificar a conduta dos legisladores; particularmente no episódio dos salários extras, que pode fornecer um indicador de quem merece ou não a confiança do eleitor. Nossa classe política, em particular a elite parlamentar, converteu-se numa oligarquia parasitária. Isto não ocorre porque políticos são ambiciosos. É bom que sejam, pois é a ambição que os faz agir e competir, fiscalizando os adversários. O problema é não serem submetidos ao escrutínio público. Como não são vistos em sua atuação individual, não são postos freios à sua ambição, restando a permissividade. É muito difícil, num cenário em que a mídia não fiscalize individualmente os Congressistas, haver políticos responsáveis, que se vejam obrigados a manter compostura perante o eleitorado, respeitando valores republicanos.