Título: A Lei de Responsabilidade Fiscal: não mexer em nada
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 16/01/2006, Opinião, p. A11

A existência de problemas herdados da administração anterior tem feito ecoar recorrentemente na mídia, nos últimos anos, a reivindicação por parte de algumas das autoridades eleitas de rever a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e/ou os contratos cuja renegociação é explicitamente por ela vetada. Foi assim com alguns dos novos governadores empossados em 2003 e o "script" voltou a se repetir com a posse dos novos prefeitos em 2005. Cabe notar, de qualquer forma, que o fato da "grita" ser menos intensa à medida que os episódios de alternância de poder se sucedem, sugere que os problemas vão diminuindo de intensidade com o passar do tempo, o que atesta o êxito da própria LRF. Não me incluo entre aqueles que entendem que esta deve merecer o mesmo tratamento que as cláusulas pétreas da Constituição. O fato de certos governantes estaduais em 2002 e de alguns prefeitos (e prefeitas!) em 2004 terem deixado para os sucessores um quadro fiscal caótico, após terem "estourado" o caixa no ano das eleições, é sinal de que os mecanismos de controle podem e devem ser aperfeiçoados. Tais mudanças, porém, deveriam esperar mais alguns anos, preferencialmente até a próxima década, por duas razões poderosas. Primeiro, a concentração de "megarreformas" que será preciso fazer em 2007 (só para começo de conversa, temos encontro marcado com as reformas previdenciária e política), algo que obrigará a escolha criteriosa de prioridades. Segundo, a ausência de uma solução plena para a crise fiscal, processo inconcluso que faria da revisão da LRF uma verdadeira "caixa de Pandora", com a revisão de cláusulas implicando certamente um custo fiscal, algo que seria de bom tom ainda evitar nos próximos anos.

Mudanças na LRF deveriam esperar alguns anos devido à concentração de reformas em 2007 e à falta de uma solução para a crise fiscal do país

Ao mesmo tempo, os dois principais argumentos levantados ao longo dos últimos anos por parte dos defensores de uma mudança dos contratos vigentes tendem a perder sustentação ao longo dos anos. O primeiro deles é o de que o ajuste das unidades subnacionais estaria sendo inócuo para diminuir o problema do endividamento, o que é desmentido pelos números da tabela, extraídos de um recente trabalho elaborado por Mônica Mora e por mim no âmbito do Ipea ("Federalismo e endividamento subnacional: uma discussão sobre a sustentabilidade da dívida estadual e municipal", Texto para Discussão número 1142, dezembro 2005, www.ipea.gov.br). A tabela mostra que a relação dívida consolidada líquida/receita corrente líquida, embora tenha de fato aumentado inicialmente, cai sistematicamente desde 2002. Hoje, inclusive, a relação dívida/receita é inferior à de 2000, antes do começo da elevação associada ao descolamento entre IGP e IPCA. No caso dos Estados, entre 2002 e 2005 a relação dívida/receita caiu de 2,3 para 2,0 em SP; de 2,4 para 1,9 no RJ; de 2,6 para 2,0 em MG e só não caiu mais no RS devido ao problema dramático que o Estado tem com a folha de inativos, mais grave que na média nacional. Ressalte-se a notável redução da importância relativa da dívida nos Estados do Centro-Oeste, em função da bonança das economias locais, que explica parte do declínio do coeficiente dos demais Estados. Não nos enganemos: a "crise federativa" da dívida estadual e municipal é um tigre de papel. O segundo argumento, associado ao primeiro, relaciona-se com a "superindexação" do IGP. Isto, de fato, foi particularmente importante até 2002, mas perdeu força posteriormente. Além disso, em um prazo de 30 anos o fenômeno perde relevância. Se tomarmos dezembro de 1998 como ponto de partida, o IGP teve uma "superindexação" de 29% até dezembro, na comparação com o IPCA. Isso é certamente muito significativo, mas diluído em 30 anos implica que a taxa de juros real média das três décadas é onerada com um "plus" de 0,9% ao ano no período, taxa que não é desprezível, mas que está longe de ser um custo adicional insuportável. Especialmente quando se leva em conta os juros reais que o governo central tem pago ao mercado pelo seu passivo, tendo entre os seus ativos um crédito junto a Estados e municípios pelos quais recebe juros reais, na maioria dos casos, de 6% - mesmo que, pela razão exposta, nesse caso isso corresponda na prática a 7%. Portanto, no que tange à LRF, a melhor coisa que o presidente que for escolhido nas urnas em 2006 - seja Lula, caso reeleito, ou alguém da oposição - pode fazer é não fazer nada, ou seja, não mudar uma vírgula da lei ou dos contratos de renegociação. O que deve ser feito, sim, é definir de uma vez por todas o limite de endividamento do governo central. Fala mal da austeridade fiscal que aquele que mais faz profissão de fé nela - o governo federal - não se submeta ao "constraint" válido para as demais unidades da federação. Portanto, uma alternativa a ser contemplada seria unificar o teto de endividamento em relação à receita corrente líquida em 2, não só para os Estados, como também para o governo central. No caso deste, isso implicaria acenar com uma trajetória fortemente declinante do endividamento ao longo dos próximos dez anos, algo importante como forma de sinalização futura no processo, que se deseja duradouro, de redução da taxa de juros, e implicaria conservar um superávit primário importante ao longo do tempo.