Título: O setor público e a infra-estrutura
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 22/12/2005, Opinião, p. A11

Nada mais atual, hoje como antes, do que os desequilíbrios das contas do setor público. O superávit fiscal primário no nível de 4,5% ou 5% do PIB a ninguém ilude. O governo gasta muito, gasta mal e nenhuma satisfação dá aos contribuintes sobre o destino do dinheiro que arrecada da sociedade. Face à importância do tema, surpreende que pouca gente se dedique a destrinchar os números que permeiam os orçamentos públicos. Passa meio camuflado o fato de que receitas correntes da ordem de 42,35% do PIB (referente a 2003) da administração direta - uma das mais altas do mundo, em coro com a alardeada primeira posição no quesito taxa de juro real - possa conviver com significativamente baixas taxas de investimento em infra-estrutura, da ordem de 0,4% do PIB, muito inferior até à média de 1,8% do PIB observada na América Latina. Para onde vai o dinheiro que o Tesouro Nacional tão avidamente recolhe? Os dados mostram que tem ido para cobrir as despesas correntes, que em 2003 representaram 45,31% do PIB pela contabilidade que mede o comportamento da administração pública direta. Portanto, está claro que a dinheirama arrecadada pelo governo está longe de contribuir para engordar o estoque do capital fixo do país, muito embora isto seja fundamental para garantir ao Brasil um lugar de destaque na esfera internacional. Mas nem todos estão parados. O esdrúxulo caso fiscal brasileiro acaba de ser dissecado em um dos mais abrangentes trabalhos jamais elaborados sobre a situação do setor público, com foco na infra-estrutura. "Fiscal Space and Public Sector Investments in Infrastructure: a Brazilian Case-Study" ("O Espaço Fiscal e os Investimentos do Setor Público em Infra-estrutura: um Estudo do Caso Brasileiro"), de autoria de José Roberto Afonso, Érika Amorim Araújo e Geraldo Biasoto Júnior, três dos economistas que mais entendem de questões fiscais no país, chama atenção para os aspectos estruturais desde as implicações do federalismo, passando pelos efeitos da estabilização e da privatização sobre a configuração das contas do setor público. O estudo é super atual, além de pertinente para a ocasião. Está sendo publicado este mês pelo Ipea (Texto para Discussão nº 1141, em www.ipea.gov.br) e traça, em suas quase 150 páginas, uma radiografia muito pormenorizada do estado da arte do tamanho do setor público na economia brasileira e da distribuição dos recursos públicos entre os vários destinos, além de quantificar para a profundidade dos "buracos" na área de investimentos do governo. Até as menos desavisadas criaturas certamente se surpreenderão ao saber que a modesta expansão acumulada de 15,93% do PIB brasileiro em termos reais entre 1995 a 2003 - média anual de 1,86% ao ano - foi basicamente absorvida pela administração direta do setor público, cuja participação na renda nacional cresceu no mesmo período, em termos reais, nada menos do que 38,63% (média de 4,17% ao ano) contra apenas 6,91% de expansão acumulada da renda do setor privado (média de 0,84% ao ano). A leitura desses números leva a duas constatações: primeiro, boa parte da atividade econômica de iniciativa do setor privado acabou sendo "comida" pelo governo através da imposição de taxas de impostos cada vez mais elevados e, segundo, essa renda que o governo tirou do setor privado foi destinada à cobertura de despesas correntes como a Seguridade Social (os gastos desta rubrica envolveram cerca de US$ 80,5 bilhões em 2003, representando 15,89% do PIB ou 38,3% de todas as despesas públicas da administração direta, medidas pelo critério das contas nacionais).

Expansão acumulada de 15,93% do PIB brasileiro em termos reais entre 1995 a 2003 foi basicamente absorvida pela administração do setor público

Outra expressiva parte dos gastos públicos (representada por cerca de US$ 29,2 bilhões, equivalentes a 5,77% do PIB em 2003 ou a 13,9% de todo o rol dos gastos) destinou-se à cobertura dos compromissos com juros da dívida pública. Em ativos fixos, o governo gastou em 2003 o equivalente a apenas 1,7% do PIB. Isso inclui construções e aquisição de máquinas e equipamentos. Não é de estranhar, portanto, que os "buracos" proliferem: estradas com crateras impenetráveis, portos à beira da saturação, incertezas ainda pendentes quanto ao abastecimento de energia no caso de uma economia em franca expansão e uma verdadeira miscelânea de regras e de superposições de direitos e responsabilidades que atravancam os necessários investimentos na área do saneamento básico, além da falta de dinheiro, é claro. O trabalho mostra uma tabela com a contribuição do setor público (administração direta e indireta) para a formação bruta do capital fixo em infra-estrutura. No ano de 2003, os dados indicam que não passou de 1,12% do PIB, dos quais 0,51% do PIB referiam-se ao setor de transporte, uma fatia de 0,32% do PIB à energia elétrica, cerca de 0,25% do PIB para saneamento e 0,04% para o setor de telecomunicações. No caso deste último, a pequena presença do governo é explicada pela privatização do setor de telecomunicações, efetuado em 1998. No setor de transportes, o próprio governo reconheceu a necessidade de recuperar 5.433 quilômetros de estradas. Mas o "buraco" mais relevante, tendo em vista o impacto sobre a saúde da população, traduz-se na deficiência do setor de saneamento básico. A maior parte das empresas do setor ainda é constituída na forma de companhia pública de propriedade dos governos estaduais, com uma grotesca peculiaridade: apenas sete das 31 empresas de saneamento são operacionalmente superavitárias. O texto de Afonso, Araújo e Biasoto Júnior menciona um recente estudo sobre o setor de saneamento básico desenvolvido pela Associação das Empresas Estaduais de Saneamento Básico (Aesbe) que, entre outros atestados de ineficiência, aponta para o expressivo nível de perda de receita, atingindo a média de 40,4%. Também dedica espaço para fazer um histórico sobre a contabilidade pública no Brasil e sobre as motivações que levariam o setor privado a aderir ao sistema de Parceria Público-Privada (PPP). O trabalho publicado pelo Ipea deve ser lido por todos aqueles que têm curiosidade em saber mais sobre os números do setor público brasileiro e sobre como o governo se meteu na enrascada que aprofundou a deterioração na forma de alocar o dinheiro que arrecada dos brasileiros.