Título: Um círculo onde juros altos alimentam taxas mais altas
Autor: Leonardo Faccini Tavares Bastos
Fonte: Valor Econômico, 17/01/2006, Opinião, p. A10

Nível em que a Selic é fixada causa distorções que levam à sua perpetuação

A taxa básica de juros praticada no Brasil vem ocupando, há anos, o centro do debate econômico. Apesar das críticas, o Banco Central resiste em diminui-la de maneira mais consistente para evitar que a inflação aumente, o que está de acordo com as práticas de muitos países. A questão que se apresenta é por que a inflação brasileira, para ser contida, precisa dos juros mais altos do mundo. O país apresenta uma dívida externa pequena e saldo comercial expressivo. O setor público tem operado com superávit primário - logo, os gastos, a despeito do tamanho e da qualidade, não podem ser a causa dos juros. Há a despesa com o serviço da dívida interna, essa sim não inteiramente coberta. Contudo, não procede apontá-la como causa dos juros altos, já que é o Banco Central que fixa a taxa que remunera o principal título e ainda dispõe de amplo poder de barganha junto aos credores, quase todos domésticos. Por outro lado, a autoridade monetária não fixa aquela taxa de maneira subjetiva, mas estabelece a meta de inflação e alimenta um modelo que define o intervalo de taxa de juros que torna essa meta exeqüível. O problema é que o nível em que a taxa de juros é estabelecida provoca distorções que acabam exigindo sua perpetuação. Essas distorções iniciam-se no processo de obtenção dos recursos com que são pagos os juros da dívida pública. A maior parcela provém dos superávits primários e o restante é pago com a emissão de mais títulos. Os superávits são angariados de indivíduos e empresas, que têm parte de suas rendas transferidas para os detentores dos títulos. Essa renda, caso não fosse transferida, seria convertida em demanda e oferta de bens e serviços e também poupada. Na atual situação, é transferida também para empresas e indivíduos, só que com uma tendência maior a conservá-la aplicada. Primeiro, porque têm um perfil, em média, diferente. Segundo, no caso das empresas, porque percebem que parte do dinheiro saiu do jogo real e preferem fazer o mesmo. Terceiro, porque a remuneração financeira, nessa situação, é mais convidativa. Quanto à parcela dos juros paga com títulos, também se agrega às aplicações e à demanda. Chega-se a um quadro "intermediário" em que a oferta de bens é menor, mas o poder de demanda é mantido, tendo apenas migrado dos holerites e balanços para os fundos de investimento. O quadro final é que parte dessa diferença entre o poder de demanda e a oferta se manifesta, no longo prazo, numa inflação não muito elevada mas crônica, meio imprevisível e sensível a eventos, combatida com juros altos que remunerarão os títulos, e assim por diante. Todo esse processo tem uma versão ou sustentação monetária. O produto real brasileiro cresceu numa média anual de 2,5% de 2000 a 2005, enquanto a quantidade de haveres financeiros, medida pelo M3, expandiu-se à média de 16,1%. Essa expansão resultou, basicamente, dos juros que remuneram as aplicações financeiras. Ninguém mais deixa dinheiro em conta corrente, podendo aplicá-lo num fundo de investimento. "Na realidade" lembra Joseph Stiglitz, "com a tecnologia moderna, as pessoas podem utilizar títulos públicos para realizar transações". Em outras palavras, a emissão de títulos públicos passou a equivaler à emissão de moeda remunerada. A atratividade dessa remuneração, somada ao desejo de poupar, explica por que a expansão da moeda "tecnológica" não se reflete inteiramente na inflação. Antes, é preciso descontar, dos 16,1% da expansão, o crescimento real do produto, o que reduz a emissão sem contrapartida para 13,3%. Em seguida, desconta-se o IPCA médio de 8,1%, que é o efeito inflacionário. Os 4,8% restantes é que resultam da preferência relativa dos aplicadores de reter os rendimentos, além de parte dos haveres ficar indisponível em carteiras institucionais. Em 2005, o crescimento do M3 será próximo de 15,7% e o do produto, de 2%, com o IPCA em 5,7%. Ou seja, o coeficiente de entesouramento subiu para mais de 7%, refletindo a alta dos juros e a menor atividade econômica. Em outros países que adotam o regime de metas de inflação, o produto cresce, por exemplo, 4% ao ano, e os bancos centrais calibram os juros entre 3% e 8%. Os dois vetores caminham numa mesma ordem de grandeza, com os juros básicos servindo apenas para refrear ou estimular a demanda agregada.

Outros países com regime de metas de inflação usam os juros básicos só para refrear ou estimular a demanda agregada

Além dos juros preventivos, a resistência da inflação gera uma incerteza quanto ao seu nível futuro, com dois desdobramentos. O mercado embute, nas taxas pretendidas e aceitas, um prêmio de risco da inflação futura. Esta, como em qualquer seguro, acaba não sendo tão elevada, ficando a taxa real de juros ainda mais alta. Para abrandar a mesma incerteza, o Banco Central utiliza uma taxa básica que serve não apenas para gerenciar a liquidez no "overnight" como para corrigir a LFT, produzindo o efeito-riqueza e exigindo mais juros para contorná-lo. A princípio, haveria duas formas de sair dessa armadilha, ambas envolvendo custos para a sociedade. A solução monetária é o Copom ir trazendo a taxa básica para níveis normais, mesmo que os que recebam juros incorram em perdas reais transitórias, já que o dólar e a inflação poderão subir. O Tesouro teria mais dificuldade de vender títulos nesse período, mas, em caso de impasse, teria que promover resgates em dinheiro, o que também geraria inflação, mas ao menos de forma primária e não circular. Haveria também positividades, mesmo na fase de transição. Os investidores não teriam muito para onde ir na atual situação cambial. Abririam e expandiriam negócios, comprariam imóveis e bens duráveis e investiriam em ações e previdência. Os custos desse ajuste seriam as perdas dos rentistas e a inflação temporária. A solução fiscal é o Tesouro passar a pagar integralmente os juros da dívida com o aumento do superávit primário - o chamado déficit nominal zero. Haveria uma transferência adicional de renda dos contribuintes ou dos beneficiários dos gastos públicos para os que recebem juros, em lugar da emissão complementar de títulos. A dívida como proporção do PIB se reduziria e também os juros. Os custos seriam a contenção da atividade econômica, os prejuízos nos serviços sociais e o aumento da concentração de renda. Poderia também haver uma solução mista, combinando, por exemplo, queda nos gastos com uma redução menos "voluntarista" dos juros. O ano eleitoral será propício à apresentação de propostas pelos candidatos. De preferência, que sejam realistas.