Título: Por trás da fraude coreana
Autor: H. T. Goranson
Fonte: Valor Econômico, 17/01/2006, Opinião, p. A11

Na pesquisa das células-tronco, está em jogo um dos maiores tesouros da história da medicina

Pesquisas científicas são geralmente realizadas visando melhorar nossas vidas, mas constituem também um setor econômico, envolvendo enormes investimentos de governos e empresas. As possíveis recompensas em algumas áreas de pesquisa são extraordinariamente altas, e por isso foi tão ampla a repercussão da descoberta de que o cientista coreano Hwang Woo-suk fabricou os resultados do seu trabalho com células-tronco. O episódio ilustra a dimensão da corrida travada pela primazia de descobertas no terreno das células-tronco. O que está em jogo é, possivelmente, um dos maiores tesouros na história da medicina, e qualquer organização - laboratórios de pesquisa - poderá conquistá-lo. A última grande corrida científica desse tipo foi o esforço para mapear o genoma humano, que promete modificar radicalmente o futuro das vidas humanas. Esse estudo foi iniciado pelos EUA, que se valeram de descobertas desenvolvidas na esteira do lançamento das bombas atômicas no Japão para compreender a extensão de danos genéticos de longo prazo. As atuais iniciativas de pesquisas sobre células-tronco e seu potencial são igualmente espetaculares porque resultarão numa revolução radical na medicina. Uma célula-tronco é especial por ser capaz de reproduzir uma forma que é diferente de si mesma. Enquanto uma célula da pele ou do fígado, por exemplo, é capaz de reproduzir apenas mais pele ou fígado, as células-tronco, que se mostram mais vigorosas no início do desenvolvimento humano, são células "mestres". Quando um óvulo fertilizado transforma-se em um embrião, e depois num feto, essas células-tronco iniciais, de alguma maneira, ensinam suas células-filhas como tornarem-se pele, fígado, olho ou ossos. Precisamos saber como essa transformação é ativada. Esse conhecimento poderá resultar em progressos enormes e patenteáveis. A maior parte do foco está centrado em doenças genéticas, como a de Alzheimer e de Parkinson, e em distrofia muscular. Nesses casos, as células-tronco seriam estimuladas a restaurar tecidos nervosos. Isso também beneficiaria pacientes com lesões no cérebro e na coluna, ou os que tenham sofrido derrames e/ou sofram de paralisia. Também haveria ganhos em campos como o de terapias genéticas. Uma célula-tronco muda sua identidade mediante um processo de "disparo" - um sinal "ativa" um gene de célula de fígado no interior da versão de célula-tronco. Quando cientistas descobrirem como ligar/desligar esses comutadores, poderá ser possível implantar células-tronco no organismo e ativá-las para que substituam corretamente tecidos danificados, sejam quais forem. Não é de surpreender, em vista do enorme potencial dessas técnicas, que equipes de cientistas se mobilizem em quase todos os países para realizar pesquisas com células-tronco embrionárias. A competição ganhou dramaticidade máxima depois que a principal força pesquisadora, os EUA, abandonou a corrida devido à influência da religião na política (embora a Califórnia tenha decidido não perder a oportunidade e aprovado subsídios de US$ 3 bilhões a pesquisas).

Atualmente, os desafios das pesquisas científicas são complicados por fatores políticos, forças de mercado e interesses nacionais

Pelo fato dessas recompensas serem tão grandes e o esforço científico não exigir infra-estrutura enorme, muitos países menores tentam aproveitar a ausência dos EUA. Qualquer centro competente em pesquisa médica pode entrar na corrida, seja no México, Etiópia, Indonésia ou Iêmen. Seja quem for o vencedor, quando alcançar o objetivo poderá ter acrescentado o equivalente a um campo petrolífero saudita à sua economia. Mas, embora qualquer um possa vencer, ciência nesse nível nunca depende de um "eureca" isolado, em que um avanço revolucionário único põe, de súbito, fim à corrida. Descobertas ocorrem incrementalmente e, em se tratando de ciência, cada passo é anunciado e testado. É assim que as comunidades de pesquisadores ganham impulso e líderes incorporam talentos, recursos e prestígio, num jogo intelectual que progride aos trancos e barrancos. No âmbito dessa corrida mais ampla ocorrem muitos enfrentamentos menores, disputando a conquista de resultados precoces notáveis. Em maio de 2005, o centro de pesquisas de Hwang, em Seul, anunciou seu primeiro importante sucesso. O centro disse que desenvolveu uma técnica mediante a qual células-tronco novas e perfeitas poderiam ser clonadas de células comuns. Essa foi uma grande notícia, pois implicaria que um número suficiente de células-tronco poderia ser produzido sem controvérsia, possibilitando, assim, que qualquer pesquisador tivesse condições de fazer pesquisas de qualidade sem incorrer no que o presidente americano George W. Bush qualificou como "tirar uma vida para salvar uma vida". E o mais importante é que os coreanos tomaram uma atitude hoje comum: eles pediram uma patente sobre o processo. Por um momento, quase chegou a parecer que a Coréia do Sul iria se tornar uma superpotência mundial na área de saúde. Hoje sabemos que os pesquisadores de Seul fraudaram. Auditoria realizada por uma comissão investigativa da Universidade Nacional de Seul concluiu que as células-tronco "clonadas" foram criadas por meio de fertilizações em tubos de ensaio. A fraude atordoou a comunidade científica, especialmente porque a reivindicação divulgada pelos pesquisadores coreanos era tão obviamente falsa. Por que, então, teriam eles colocado em risco suas reputações e carreiras? As pesquisas médicas sempre defrontaram-se com muitos obstáculos, mesmo quando o objetivo é simplesmente realizar descobertas. Hoje os desafios são complicados por fatores políticos, forças de mercado e interesses nacionais. No caso das pesquisas com células-tronco, enormes fortunas dependem de qual grupo venha a assumir a dianteira, seja em qual país seu laboratório esteja localizado. À medida que a competição se intensificar, veremos avanços extraordinários, e, sem dúvida, mais truques de relações públicas.