Título: Estabilização ou radicalismo, o dilema de Evo Morales
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/12/2005, Opinião, p. A10

A vitória de Evo Morales nas eleições presidenciais mudou o jogo político na Bolívia. A margem com que Morales bateu seus principais adversários - o segundo colocado, o empresário Jorge Quiroga, obteve cerca de 31% dos votos - não deixa dúvidas de que o líder dos "cocaleros" tem atrás de si o maior apoio popular obtido nas urnas desde 1985. Como sempre na Bolívia, esta força pode levar a nação ao beco sem saída de um regime nacionalista com verniz esquerdista, ou produzir uma produtiva reacomodação de forças políticas e econômicas, que se tornou urgente. Com a queda do presidente eleito Sanchez de Lozada e de seu substituto, Carlos Mesa, em apenas dois anos, tornou-se cada vez mais claro que a nova liderança do país emergiria dos movimentos sociais que os depuseram. O candidato mais preparado e que tinha atrás de si um movimento organizado era Morales, do Movimento ao Socialismo. Os bolivianos pobres, a maioria de origem indígena, resolveram dar a ele a chance de redirecionar a economia do país em direção da redução das desigualdades sociais. A sensação de que a Bolívia foi saqueada por empresas estrangeiras, em união com as elites locais, é forte no país e foi um dos motivos que alimentaram os discursos e a vitória de Morales. Com um Produto Interno Bruto de US$ 22 bilhões, a Bolívia é um das nações mais pobres do continente, onde 64% da população vive abaixo da linha de pobreza. As elites políticas tradicionais foram varridas pelas urnas. Já haviam se tornado irrisórias nas eleições municipais de dezembro de 2004 e sumiram do mapa nas eleições de domingo passado. O mais poderoso dos partidos que representam o passado, o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), sai da votação com apenas uma das 27 cadeiras do Senado e 8 das 130 da Câmara. O MAS deverá obter metade das cadeiras na Câmara e quase metade (13) no Senado. As forças de centro direita arremataram 53 deputados e 14 senadores. Assim, o MAS negociará as principais reformas em uma posição invejável, considerando-se a tradicional fragmentação política do país. Algumas de suas iniciativas, em que pese a retórica explosiva de Morales, são fruto de um consenso tumultuado. Houve pela primeira vez eleição para governadores e o grau de autonomia das províncias será decidido em um plebiscito, que deverá ocorrer após a convocação de uma Assembléia Constituinte. Os riscos para Morales estão em sua agenda econômica. A nacionalização do petróleo e do gás, já contemplada em lei, deverá ser levada adiante. Morales descartou a expropriação, mas teme-se, com boas razões, que ao avançar na estatização, a Bolívia não contará com investidores externos interessados nas novas regras do jogo. E, dependendo da forma como os contratos atuais forem renegociados, as receitas de gás e petróleo que vão para o Estado podem cair ao longo do tempo e elas são fundamentais para o país. Um segundo ponto é a reforma agrária em terras ociosas, uma bandeira que assusta os ricos fazendeiros e empresários de Santa Cruz de la Sierra e outros Estados, que namoram com a secessão territorial - um perigo ainda presente. Por último, há a espinhosa questão do plantio da coca, vital para os camponeses bolivianos, mas um dos principais pontos de atrito com os EUA. Morales quer estender seu plantio - e não ampliar a erradicação - , embora prometa combater o narcotráfico. Os EUA concedem uma ajuda econômica relevante ao país por considerá-lo um aliado no combate ao tráfico. Com Morales na presidência, essa ajuda pode acabar. E, dependendo de sua política externa, até agora marcada por anátemas contra o "imperialismo", Morales poderá também perder o status de nação favorecida no mercado dos EUA, que expira em 2006, incentivo que tem estimulado o surgimento de um parque têxtil nos arredores de La Paz com boa geração de empregos. Morales pode ser, por outro lado, um fator de estabilização na Bolívia. Ele terá de usar de toda a habilidade para conter as facções à esquerda dos movimentos sociais, de dentro e de fora do MAS. Uma inclinação por uma política "chavista", não descartada, tenderá a levar o país de novo à beira da desintegração social e de aventuras golpistas. O primeiro cenário é o mais favorável para o Brasil, que depende agora de uma fonte cada vez mais incerta de suprimento de gás. A boa relação entre Morales e Lula possibilita, embora não garanta, a continuidade da compra do gás em bases que possam satisfazer a ambos os lados.