Título: Agenda para a dívida pública
Autor: Márcio G. P. Garcia
Fonte: Valor Econômico, 23/12/2005, Opinião, p. A11

A primeira vez que ouvi falar da dívida pública interna foi há cerca de 25 anos, quando era ainda estudante de engenharia da UFRJ. Em uma assembléia estudantil, o presidente da UEE (União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro) discursava com vigor, discorrendo sobre os males do Brasil que a nós cabia resolver. Citou o enorme problema da dívida externa, que então sufocava nossa economia. Tal menção era lugar comum nos discursos da época. Mas ele prosseguiu no tema, e mencionou uma "tal dívida interna", da qual eu jamais ouvira falar até então. Segundo o honesto companheiro confidenciou à pequena multidão, ele tampouco sabia bem o que era a "tal dívida interna", mas sabia que era um grave problema. Se a agenda ocupada de médico permitir ao ex-companheiro de movimento estudantil a leitura deste artigo, ele saberá que não só influenciou a agenda de pesquisa deste economista, como também vaticinou corretamente o grave problema que a dívida interna se tornaria, tomando o lugar da dívida externa como "patologia importante" da nossa economia. O gráfico mostra a evolução da dívida líquida do setor público (passivos menos os principais ativos públicos), e sua divisão nos componentes externo e interno. A dívida externa líquida (passivos externos menos reservas internacionais) caiu de 24,6% do PIB (58,5% da dívida líquida total) em janeiro de 1991 para apenas 3,5% do PIB (6,9% da dívida líquida total) em outubro de 2005. Já a dívida líquida interna exibiu grande crescimento, passando de 17,4% do PIB (41,5% da dívida líquida total) para 47,5% do PIB (93,1% da dívida líquida total). Ou seja, a dívida líquida (51,1% do PIB em outubro de 2005) é quase toda composta por dívida interna. Hoje não faz mais sentido um líder estudantil atacar o problema da dívida externa; o problema é a dívida interna. Quais são as questões principais que devem constar na agenda para a dívida pública? A primeira é reduzi-la. Isso permitirá afastar de vez o fantasma da moratória, reduzindo ainda mais o risco país, barateando o custo de capital, e produzindo efeitos positivos sobre a taxa de crescimento do PIB. Para realizar isso é necessário que o governo implemente plano de controle de gastos públicos, reduzindo o peso das despesas primárias do setor público em relação ao PIB, como vem sendo defendido pela área econômica do governo. A implementação desse ajuste das despesas públicas permitirá a redução mais acentuada das taxas de juros sem provocar aumento da inflação, ambos os efeitos (redução dos gastos e queda dos juros) acarretando a queda do déficit nominal que alimenta a dívida líquida. O maior crescimento proporcionado por tal cenário trará a rápida redução da razão dívida/PIB. Sem controle das despesas primárias do setor público, todo o processo de redução da razão dívida/PIB fica mais lento ou pode mesmo parar. Há que se ter em mente que as condições internacionais são hoje as melhores possíveis, sendo este o melhor momento para implementar tal plano. Caso a boa conjuntura mundial venha a sofrer piora, a dívida poderá voltar a aumentar, com efeitos negativos sobre o crescimento econômico. A segunda questão diz respeito à composição da dívida pública. O principal componente da dívida líquida interna é a dívida mobiliária federal. Esta representa 48,9% do PIB (outubro de 2005). A composição da dívida mobiliária federal por indexadores constitui outro problema a ser atacado.

Sem controle das despesas primárias do setor público, todo o processo de redução da razão dívida/PIB fica mais lento ou pode mesmo parar

A principal fragilidade da composição de nossa dívida mobiliária costumava ser a excessiva participação dos títulos públicos indexados à taxa de câmbio. No evento de crises de fuga de capitais, a depreciação cambial decorrente tornava a dívida cambial mais cara, elevando a dívida total, como se pode ver no gráfico durante o segundo semestre de 2002. Hoje, a participação da dívida cambial está quase zerada. A estratégia governamental foi plenamente bem sucedida em eliminar tal fragilidade. O principal problema hoje é a excessiva indexação da dívida pública mobiliária à taxa de juros de curto prazo, a taxa Selic. A participação dos títulos indexados à Selic adicionada à das operações de mercado aberto do BC chega quase a 60% da dívida mobiliária federal. A dívida indexada à Selic é uma dívida cara e com características ruins, pois torna-se ainda mais cara durante as crises, quando o BC se vê obrigado a elevar os juros para conter a fuga de capitais e a excessiva depreciação cambial. Além disso, por reverter o efeito riqueza, reduz a eficiência da política monetária. Diminuir a indexação da dívida pública à taxa de juros de curto prazo é a tarefa do momento para os gestores da dívida pública. Tal redução deve se dar em um contexto de operações de mercado, sem o recurso a qualquer das nefastas mágicas do passado. A queda da Selic torna o título indexado à Selic menos atraente, facilitando sua substituição por outro tipo de título: pré-fixado, indexado a índice de preços, ou flutuante (análogo à Libor), como sugeri em minha coluna de 09/09/2005. Felizmente, pode-se matar dois coelhos com uma só cajadada. A implementação do ajuste das despesas públicas permitiria ao BC não só reduzir a média da taxa Selic, como também passar a realizar política monetária anticíclica, como ocorre nos países desenvolvidos, e também em alguns mercados emergentes mais avançados, como o Chile. Com a Selic podendo cair nas recessões, ao invés de subir como ocorre hoje nas crises financeiras, seu atrativo de ser mais alta em tempos ruins desapareceria. Isso seria mais um fator impulsionando a diminuição da indexação à Selic. Na área da dívida pública, como em várias outras, há ainda muito por fazer para criar as melhores condições para o crescimento sustentado. Imbuído do espírito natalino, quero desejar que nossos governantes dêem ao país esse presente. Feliz Natal a todos.