Título: Presidentes se aliam em defesa do bloco
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2006, Brasil, p. A4
Relações externas Lula e Kirchner devem rejeitar tentativa de um acordo bilateral entre EUA e Uruguai
Sob nova ameaça de decomposição, pelo desejo do Uruguai de negociar um acordo comercial diretamente com os Estados Unidos, o Mercosul ganhará amanhã uma defesa veemente dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, que se encontram em Brasília. Os dois governantes devem aproveitar o bom momento da relação bilateral para trocar juras de amor e tentar afastar, em definitivo, os freqüentes rumores de que nunca se deram muito bem. Do lado argentino, há um clima de satisfação com a promessa brasileira de acertar, até o fim do mês, a criação de salvaguardas específicas para o comércio entre os dois países - mecanismo conhecido como Cláusula de Adaptação de Competitividade (CAC). Em Brasília, vê-se com grande simpatia a primeira vinda de Kirchner como visita de Estado, detalhe protocolar que, para os diplomatas, é algo cercado de simbologia. Ele se comprometerá com o Mercosul, reafirmará o apoio da Argentina à manutenção do Brasil à frente das tropas de paz no Haiti e pode até fazer referências elogiosas à Comunidade Sul-Americana de Nações, invenção de Lula vista com ceticismo por Buenos Aires. A visita de Kirchner coincide com novo período de turbulências no Mercosul, em que ministros uruguaios fazem críticas viscerais ao bloco e defendem abertamente uma política de aproximação com os EUA. Em reunião com toda a sua equipe ministerial, na segunda-feira, o presidente Tabaré Vázquez teria estimulado essa estratégia. Segundo relato de jornais uruguaios, Vázquez prefere a negociação de um acordo de todo o Mercosul com os americanos, no formato "4+1", mas acha que essas discussões são impossíveis. Lula e Kirchner devem unir-se na defesa intransigente do Mercosul. Mas o embaixador da Argentina no Brasil, Juan Pablo Lohlé, diz que os dois líderes terão hoje uma boa oportunidade para "conversar sobre política e visões de longo prazo, sem estarem pautados por interesses comerciais imediatos". Quando fala da ausência temporária de conflitos comerciais, Lohlé refere-se principalmente ao caráter simbólico de uma visita de Estado. Por convenção diplomática, um presidente faz apenas duas viagens ao ano desse tipo - e oferece tal recepção a apenas dois colegas estrangeiros. Em 2006, Lula só confirmou uma visita de Estado, em março, ao Reino Unido. Além de Kirchner, o Itamaraty tenta agendar uma visita do presidente francês Jacques Chirac. Ironicamente, porém, Brasil e Argentina estão a um passo de criar um novo retrocesso, pelo menos em teoria, no Mercosul, ao mesmo tempo em que sairão em defesa do bloco. Segundo negociadores dos dois lados, apenas quatro reuniões técnicas separam os países da criação de salvaguardas. O mecanismo é um recuo em qualquer projeto de integração regional baseado no livre trânsito de bens e serviços. Ontem, o governo brasileiro enviou a Buenos Aires uma contraproposta do modelo apresentado pelos argentinos. Uma dos poucos pontos ainda indefinidos é a duração do mecanismo - se será algo incorporado permanentemente ao sistema de comércio bilateral ou terá prazo de validade. Também há dúvidas sobre a criação de um órgão específico para julgar reclamações comerciais ou se será usado o Tribunal de Solução de Controvérsias, instalado em Assunção. O subsecretário-geral de América do Sul do Itamaraty, embaixador José Eduardo Martins Felício, disse que o mecanismo de salvaguardas negociado entre os dois países deverá ser estendido a Uruguai e Paraguai. É apenas uma questão de tempo, segundo o diplomata. "Existem problemas comerciais entre Brasil e Argentina que, pelo grau de escala industrial, não afetam os demais sócios no momento. Mas vamos ter que transformar isso num entendimento de todo o Mercosul", afirmou Felício. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) divulgou nota em que sublinha que o regime de salvaguardas contraria o espírito do Tratado de Assunção, peça jurídica fundamental do bloco. Mas a entidade diz adotar uma "posição pragmática" e preferir limitar o comércio por meio de um acordo formal do que "manter restrições voluntárias, como já vinha ocorrendo". A Fiesp pede o cumprimento de cinco condições para implantar a CAC - entre elas, que as salvaguardas não excedam um ano e que haja um programa "efetivo" de reestruturação para o setor demandante. Lohlé rebate as críticas. "A CAC representa um projeto de integração com regras. Numa integração sem regras, ganha sempre o maior", avalia o embaixador argentino. "Esse mecanismo existe em qualquer sistema desigual, a começar das famílias. O filho mais velho é quem precisa trabalhar mais, enquanto o menor ganha um dinheirinho para comprar as suas balas", filosofa.