Título: Encontro de presidentes termina sem acordo
Autor: Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2006, Brasil, p. A4

Relações externas Apesar dos discursos de Lula e Kirchner, impasse permanece nas negociações comerciais

Em um encontro destinado a aparar de vez as arestas nutridas durante os primeiros anos de mandato, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner alinharam-se na defesa do Mercosul e concordaram com a adoção de medidas para corrigir os desequilíbrios comerciais entre os dois países, mas seus discursos tiveram pouco efeito nas mesas de negociação. A primeira visita de Estado de Kirchner ao Brasil não permitiu avanço relevante nas duas principais discussões do momento entre Brasil e Argentina: a criação de um regime de salvaguardas para o comércio bilateral e a renovação de um acordo automotivo. O porta-voz dos desentendimentos foi o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, que adotou tom semelhante às preocupações manifestadas por empresários brasileiros nos últimos dias. Segundo o ministro brasileiro, o governo argentino insiste na criação de salvaguardas com duração de quatro anos para proteger setores industriais que aleguem surtos de importações do país vizinho. Também quer a aplicação automática de medidas, com investigação apenas posterior dos supostos desvios, e não prevê programas de reestruturação do setor contemplado pelas barreiras comerciais. Esses três pontos são vistos com restrições pelo governo brasileiro. Furlan demonstrou otimismo em solucionar as pendências até o fim de janeiro, prazo acertado pelos presidentes, mas ressaltou que as salvaguardas previstas na Cláusula de Adaptação Competitiva (CAC) devem levar à reindustrialização da Argentina, e não à substituição de fornecedores brasileiros por empresas de terceiros países. "Uma eventual barreira às importações brasileiras não pode ficar em níveis mais elevados do que para os países com quem o Mercosul tem acordo", afirmou Furlan, após almoço com Kirchner, em uma referência implícita a Chile e México, que já teriam roubado espaço de produtos brasileiros que enfrentaram restrições na Argentina, como eletrodomésticos de linha branca. Furlan evita dizer que aceita os quatro anos de duração para as salvaguardas, defende o princípio de não-automaticidade da CAC (consultas bilaterais de 30 dias antes da aplicação de medidas) e faz a exigência de um programa de reestruturação para os setores contemplados pelo mecanismo. Esse último ponto é igual à contrapartida exigida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) para permitir que seus sócios protejam temporariamente indústrias com competitividade reduzida ou com danos por surtos de importações. Quatro reuniões técnicas agendadas para as próximas semanas podem desatar os nós até o fim de janeiro, sublinhou a ministra argentina da Economia, Felisa Micelli, que aposta na adoção do mecanismo de salvaguardas até o fim de janeiro. Ela ecoou as declarações feitas por Kirchner, pela manhã, no Palácio do Planalto. O presidente argentino cobrou "benefícios simétricos" para os membros do Mercosul e "mecanismos flexíveis" para regular o comércio bilateral. Em 2005, a Argentina registrou déficit de US$ 3,6 bilhões nas transações com o Brasil. "Temos que alcançar avanços para criar mecanismos que impeçam que, frente a desequilíbrios comerciais transitórios, haja danos a setores produtivos", disse Kirchner. Para que o Mercosul não tenha uma direção única, acrescentou o argentino, é preciso "desenhar políticas de complementação e deixar atrás uma lógica de forte competição e deslocamento de comércio e investimentos entre países-membros". Atendo-se ao discurso escrito por auxiliares, o presidente Lula concordou. "Desequilíbrios ocasionais em uma relação tão densa são normais, mas não é do interesse, nem do Brasil nem da Argentina, que essas assimetrias se tornem estruturais", disse. Os dois presidentes frisaram a importância do setor automotivo, cujo livre comércio no Mercosul estava previsto para 2006, mas foi adiado. Nas negociações, continua o impasse. Assustados com as importações de veículos brasileiros, que abocanharam 60% do mercado vizinho no ano passado, a Argentina quer evitar um compromisso sobre o livre comércio automotivo. Furlan disse que o Brasil continuará defendendo esse princípio. Os dois países devem firmar um acordo provisório para vigorar entre 1º de março e 30 de junho. Para o "acerto-tampão", a Argentina quer um "flex" perto de 2,2 - índice verificado na prática, em 2005. Isso significa que, para cada 100 automóveis argentinos importados pelo Brasil, as montadoras podem exportar 220 sem pagar imposto. O governo brasileiro insiste numa relação de 2,6 - o flex permitido no ano passado, que não chegou a ser alcançado.