Título: As dimensões da pirataria no mercado brasileiro
Autor: Braulio Oliveira Giuliano e Contento de Oliveira
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2006, Opinião, p. A10

A falsificação de produtos que possuem marcas famosas constantemente ganha espaço na mídia. As implicações degenerativas dessa ilegalidade ao sistema social, tais como perdas tributárias ao Estado e perdas de lucros às empresas que têm produtos pirateados, são inequívocas. Não vamos nos ater aqui a apresentar dados relativos aos impactos financeiros da pirataria sobre as empresas ou sobre o Estado, até porque essas estimativas podem ser objetos de discussões infindáveis, além de podermos encontrar esses dados continuamente nos meios de comunicação. Ao invés disso, apresentamos a seguir algumas idéias que podem contribuir para o desenvolvimento de nossa sociedade com base em uma breve reflexão acerca da pirataria à luz de três dimensões: consumidores, empresas e Estado. É inegável que a pirataria cumpre um importante papel em nossa sociedade, visto que nossas escolhas, enquanto consumidores, são feitas a partir da influência de diversos fatores, dentre os quais a renda disponível. Ademais, como a renda de um provém do consumo de outro, a não ser que haja informalidade e alternativas piratas de todas as naturezas de produtos existentes, boa parte do volume de recursos girados no mercado informal volta à economia formal, via compra de produtos originais e serviços financeiros. De forma alguma fazemos aqui apologia à pirataria. Pelo contrário, chamamos a atenção às suas reais causas, a fim de que se possa combatê-la em suas raízes e de maneira eficaz, visto que o combate realizado por meio de blitze a centros de comércio informal, a ônibus de viagens ou mesmo aos seus produtores, de forma alguma resolve a questão, embora não se justifique deixar de fazê-lo. Isso porque essa estrutura informal existe tão somente porque uma parcela significativa da sociedade não pode arcar ou não concorda com os altos custos da formalidade, face à incompatibilidade entre o padrão de consumo médio e o rendimento médio real das pessoas ocupadas. Calcular o quanto indústrias donas das patentes e o quanto os governos deixam de arrecadar em tributos, a partir da estimação da quantidade de produtos pirateados, é uma abordagem absolutamente míope, simplesmente porque grande parte dos recursos destinados a esses produtos não seria redirecionada à compra de produtos originais caso eles não existissem - até porque, em sua grande maioria, os produtos pirateados não são bens de primeira necessidade. O consumidor não se comporta de maneira tão simples e linear, pois seu comportamento é influenciado por diversos fatores, a saber: culturais, sociais, comportamentais, psicológicos e mercadológicos. Em vista disso, se um consumidor adquire, por exemplo, cinco CDs piratas por R$ 25, nada indica que, na inexistência desses, ele viria a comprar um CD original, pois eles são adquiridos tão somente por apresentarem uma relação de valor mais compatível com a realidade econômica e perceptiva dos seus compradores. Portanto, o que está em jogo é a relação de benefícios e custos percebidos pelo consumidor em cada situação de consumo, de forma que esse resultado pode ou não se converter em uma compra.

Para incorporar esse mercado potencial, é preciso compatibilizar preços e pagamentos à realidade dessas massas

Se há um mercado informal é porque consumidores encontram nos produtos piratas possibilidades de ter melhor qualidade de vida. Negar ao povo meios que atenuem a sua frustração social, sem que os governos tomem as medidas cabíveis não apenas para combater práticas ilícitas, mas também para prover e estimular o acesso à sociedade legalmente constituída, pode ser perigoso até mesmo para a manutenção da relativa harmonia social existente. Portanto, a compra de produtos piratas, em nosso contexto social, pode ser compreendida como uma revolta popular, ainda que inconsciente e sem um propósito específico a não ser o de obter vantagens pessoais, mas decorrentes de estrangulamentos constituídos pelo Estado ao longo do tempo. A indústria da pirataria se alimenta, em verdade, da massa de pessoas que adquire os seus produtos com vistas à promoção de uma melhor qualidade de vida, em razão da falta de uma distribuição de renda mais equânime, de uma política tributária mais compatível com a realidade entre o quanto é possível contribuir e o que é proporcionado em troca por parte do Estado, e de uma política econômica que estimule a formalidade e o desenvolvimento social, em detrimento da abordagem puramente punitiva e focada em índices financeiros, como vem ocorrendo. Também as próprias empresas que têm os seus produtos pirateados possuem uma parcela de culpa nessa disfunção social, pois ao construir marcas fortes que se tornam objeto de desejo das massas, sem que os acessos a elas sejam construídos com a mesma velocidade e competência, abrem-se oportunidades à fraude. Muitas vezes, pelos motivos já expostos, àquele consumidor desejoso de possuir um produto com uma determinada etiqueta não basta lhe ofertar um produto original semelhante a um menor custo: seu desejo tem nome, ainda que borrado ou com qualidade inferior a um produto original mais acessível. Não é sequer razoável supor que a massa de consumidores de produtos piratas não interesse às empresas donas das patentes fraudadas. Mas, para que esse mercado potencial seja transformado em clientes, o acesso aos bens originais deve ser estimulado não apenas por meio de comunicação, mas também a partir da compatibilização dos seus preços, formas de pagamentos e crédito com a realidade dessa massa. Quando apenas a comunicação é utilizada para estimular o consumo, especialmente se pouco ou mal segmentada, a inconsistência que surge entre o desejo do indivíduo e as suas reais possibilidades de adquirir um bem ou serviço gera comportamentos deletérios a ele e à sociedade, que vão desde a ansiedade e frustração até a criminalidade. Por fim, conclui-se que as empresas formais certamente têm grande interesse em chegar àqueles que hoje são consumidores potenciais, mas que participam do mercado informal. Para tanto, é necessário que elas utilizem adequadamente as técnicas profissionais de gestão, e que sejam criadas condições econômicas e institucionais adequadas por parte dos governos, com vistas a promover o desenvolvimento das empresas, dos cidadãos e, conseqüentemente, do país.