Título: O valor do amanhã
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2005, Opinião, p. A9

De uma amostra de 600 crianças e adolescentes cariocas, mais de 40% têm colesterol alto. Além disso, mais de 10% têm triglicérides e LDL (o colesterol ruim). Mas nenhum deles tem problema de crescimento. Ao contrário, a maior parte até cresce demais, pois além de altos, estão acima do peso. Nem é preciso dizer, então, que os médicos, principalmente os cardiologistas, prefeririam crescimento mais lento, desde que mais saudável. No entanto, invejar as altíssimas taxas de crescimento do PIB de outras nações emergentes, sem sequer dar uma espiada nos resultados de seus "exames de sangue", chega a ser por aqui uma verdadeira obsessão. Não apenas de lideranças patronais e trabalhistas. Principalmente de políticos preocupados com eleições que se aproximam. Não querem nem saber se a obtenção de taxas chinesas ou indianas poderia ter conseqüências negativas para o futuro da sociedade. Apesar de sua economia estar crescendo bem menos do que o desejável, e menos do que poderia, o Brasil tem apresentado melhoras similares às dos citados jovens caso conseguissem drásticas reduções de colesterol, triglicérides e LDL. Em áreas básicas, como educação e saúde, tudo indica que continuaram nos últimos cinco anos os decisivos avanços do período 1991-2000, minuciosamente expostos pelo Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (www.pnud.org.br/atlas/). Claras confirmações dessas boas tendências estão no relatório "Situação da Infância Brasileira - 2006" (www.unicef.org.br). Além disso, desde 1993 vem se insinuando uma crucial ruptura com a alta desigualdade de renda. É verdade que prevalece a idéia de que a diminuição da desigualdade de renda é algo bem mais recente. Que só teria começado em 2002 ou 2001. Esse foi o recado que "pegou" após a recente divulgação dos resultados da PNAD referentes a 2004. E que foi reforçado pelas conclusões do sociólogo Álvaro Comin, do Cebrap, inspiradoras de leviana manchete natalina ("Folha de S.Paulo", 25/12). Conforme esse estudo, apenas de 2003 para 2004 teria havido inversão de tendência, quando, por efeito exclusivo dos programas oficiais de transferência, a renda dos 10% mais pobres cresceu 11%, enquanto a dos 10% mais ricos caía 1,3%. Todavia, além da necessidade de comparações mais adequadas (com índices de Gini, Piesch ou Mehran), é aconselhável expurgar a distorção provocada pelas aposentadorias e pensões, grandes vilãs da desigualdade de renda, como vêm mostrando as análises de Rodolfo Hoffmann, do IE/Unicamp, comentadas nesta coluna em 25/02. Isso permite constatar que começou há 12 anos a melhora na distribuição dos rendimentos entre as pessoas economicamente ativas. Além disso, no máximo 20% da recente queda da desigualdade de renda resultam dos programas oficiais de transferência, conforme nota técnica gentilmente enviada por Hoffmann.

Soluções para os problemas sociais brasileiros não clamam por asiáticas taxas de crescimento; elas dependem de mudanças institucionais

Tão ou mais importante é saber que baixas taxas de crescimento também podem agora gerar mais empregos que no passado. Pelos cálculos do Ministério do Trabalho, parece ter dobrado a relação entre o aumento de empregos formais e o crescimento do PIB. Segundo o ministro Marinho, "a relação entre a taxa de crescimento do emprego formal dividida pela variação do PIB entre 2002 e 2004 é o dobro da registrada no período 1985 a 2002". (Valor, 21/12). De uma taxa média de 2% ao ano, correspondente a 482 mil postos de trabalho, a expansão dos empregos formais passou a 4,6%, correspondente a 1,4 milhão. Claro, seria absurdo sugerir que esteja tudo azul porque nos últimos 15 anos vem caindo sistematicamente tanto o número de crianças fora da escola, como o número de analfabetos e a mortalidade infantil. Ou porque nos últimos 12 vem sendo reduzida a desigualdade de renda do trabalho, e nos últimos três vem diminuindo significativamente a insuficiência de emprego. Está aí o Brasil dos negros, das mulheres, das populações tradicionais, de todos os prejudicados pela lamentável qualidade do ensino - além do ainda mais imprevidente Brasil do atraso científico-tecnológico - para que não fique escondido o lado triste da moeda. Mas também não é razoável fazer crer que as soluções a tais problemas clamem por asiáticas taxas de crescimento. Pode mesmo ser o contrário, pois eles dependem é de mudanças institucionais postergadas por outras razões, como bem lembrou o jornalista Cristiano Romero na coluna "Brasil" deste jornal em 21/12. O mesmo se aplica à pior de todas as atuais distorções da sociedade brasileira: a propensão a destruir seus próprios alicerces naturais, tão estratégicos para o bem-estar das futuras gerações. Este país, apontado como o maior desmatador do mundo, e o terceiro na UTI da extinção, fez sinalizações apavorantes em 2005. Os brasileiros não poderiam ter se mostrado mais indiferentes à morte do veterano jornalista e ambientalista mato-grossense Francisco Anselmo de Barros, que ateou fogo ao corpo para impedir a entrega das bordas do Pantanal à implantação de usinas de cana, como quer o governador Zeca do PT. Felizmente, houve menos apatia frente à greve de fome que Dom Frei Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra (BA), fez contra novos danos ao Rio São Francisco. Seu suicídio talvez não tivesse sido tão velozmente esquecido. Mas ainda não houve desfecho, pois edição extra do "Diário Oficial da União" registra belo presente de Natal ao projeto de Ciro Gomes: créditos extraordinários superiores a R$ 25 milhões. Qual poderá ser o saldo do embate entre os setores organizados da sociedade se o bispo decidir retornar à greve de fome? Na resposta a esta pergunta estará embutida uma avaliação da capacidade de o Brasil pegar o rumo do desenvolvimento sustentável. Pois tudo o que há de mais imaturo na sociedade brasileira torcerá a favor do lobby das empreiteiras. E uma eventual derrota de Dom Cappio mostrará que o sistema límbico do Brasil ainda prevalece largamente sobre seu córtex pré-frontal, para usar a feliz analogia de Eduardo Giannetti no melhor lançamento do ano: "O valor do amanhã" (S.Paulo: Companhia das Letras, 2005).