Título: Dividida, Bolívia concede trégua a Evo
Autor: Rodrigo Uchôa
Fonte: Valor Econômico, 20/01/2006, Especial, p. A8

América do Sul Novo presidente assume domingo país politicamente fragilizado e socialmente muito desigual

Maria Paula Puentes mora em Santa Cruz de La Sierra. Maria Pankara, em El Alto. A projeção de Bolívia de uma nada tem a ver com a da outra: a primeira Maria crê que a única saída para o país é se internacionalizar, liberar o "empreendedorismo" e estimular o livre comércio; a outra defende a reestatização das grandes empresas como única forma de a população tomar posse das riquezas bolivianas. Entre essas duas Bolívias espreme-se o presidente Evo Morales, que toma posse neste domingo. Para que lado ele penderá? Maria Puentes, 25 anos, formada em administração nos EUA, acha que, caso Morales penda para a maior intervenção estatal, seu governo "não durará". "Pagamos impostos, crescemos, fazemos esse país ir adiante. Não podemos ficar atrelados a anacronismos." Essa é uma corrente de pensamento que ganha força no Departamento (Estado) de Santa Cruz, um dos nove que constituem o país. Responsável por cerca de 30% do PIB boliviano (que chega no total a US$ 10 bilhões, ou cerca de um terço do PIB do Equador, por exemplo), "Santa Cruz cresceu a uma taxa média de 5% de 1990 a 2003, enquanto a taxa média de crescimento do país no mesmo período foi de 3,6%", diz Gabriel Dabdoub, presidente da Câmara de Indústria e Comércio de Santa Cruz (Cainco). "Cerca de 50% das exportações bolivianas saem de Santa Cruz. Crescemos nossas exportações em 138% desde 1990. Queremos apenas liberdade para continuar a crescer", acrescenta. Esse discurso é repetido por muitos da geração de Maria Paula Puentes, ela mesma beneficiária do "empreendedorismo" cruzenho. Puentes faz parte dos 15% dos bolivianos que se classificam como brancos - o que ela provavelmente tenta enfatizar ao descolorir artificialmente os cabelos. Sua família, diz, dedica-se à soja. Segundo ela, o negócio vai muito bem. A agroindústria responde por 44% da economia de Santa Cruz. Essa vocação faz a capital do Departamento, Santa Cruz de La Sierra, lembrar um pouco Ribeirão Preto, com a elite local desfilando em grandes caminhonetes e jipões importados. Mauro Testo, vendedor da Toyosa, revenda autorizada da Toyota na cidade, diz que a procura por modelos novos e mais caros cresceu muito nos últimos cinco anos. "A soja tem feito maravilhas", diz, enquanto atende Maria Puentes, que levava o seu jipe RAV 4 para revisão. Cidade com cerca de 1,5 milhão de habitantes, arborizada, Santa Cruz de La Sierra está na área chamada de llanos, ou planície, que cobre quase 60% do território boliviano e tem uma média de altitude de 100 m acima do nível do mar. É uma região com temperatura média acima de 25°C - durante esta semana, passou de 29°C-, tão plana que faz o planalto central do Brasil parecer montanhoso. El Alto, onde mora Maria Pankara, não poderia ser mais diferente: a 4.100 metros de altitude, temperaturas abaixo de 10°C, a cidade de 800 mil habitantes fica no altiplano cerca de 400 metros acima de La Paz. Maria também tem 25 anos, mas, diferentemente da Maria de Santa Cruz, é casada e tem três filhos. Para se proteger do frio, usa o chapéu coco e os coloridos echarpes de lã, tão tradicionais dos aimarás, que é o mesmo grupo indígena de onde se origina Evo Morales. Os aimarás são cerca de 25% da população boliviana e habitam principalmente os altiplanos e os contrafortes andinos. Ela se diz desiludida com a política, acha que apenas a mobilização resolve alguma coisa. É entusiasta dos "paros" - os bloqueios de estradas e vias de acesso das cidades -, os quais contribuíram para a derrubada dos presidentes Gonzalo Sánchez de Lozada, em outubro de 2003, e de seu sucessor, Carlos Mesa, em julho do ano passado. Na eleição presidencial, votou em Morales, mas sem muita convicção, diz. Isso reflete uma certa fadiga mesmo nos grupos que conseguiram ter atendidas algumas de suas reivindicações. Os "paros" têm seu lado negativo até para os manifestantes, que têm de fechar seus comércios e parar de trabalhar - os que têm trabalho, claro. Para gente que vive com renda de menos de US$ 2 por dia, como é o caso de mais de 50% da população de El Alto, isso é terrível. "Deram resultados [os paros]. Se Evo não cumprir o que prometeu, voltaremos às ruas", diz. Maria Pankara segue a linha de pensamento de Felipe Quispe, fundador do Movimento Indígena Pachacuti (MIP). Quispe, que já liderou uma facção de luta armada marxista-indigenista nos anos 80 e início dos 90, quer a reestatização de todo o setor de hidrocarbonetos, "devolvendo ao povo a maior riqueza do país", afirma ele. El Alto é uma cidade que se formou nos últimos 50 anos na esteira da derrocada do setor de estanho. O declínio da atividade mineradora levou muitos dos desempregados, em sua maioria de origem indígena, a se mudarem para a cidade em busca de oportunidades na vizinha La Paz. Nos últimos anos a migração rural é que passou a ser preponderante. A maioria absoluta dos habitantes de El Alto se organiza em "juntas de vizinhos", que ajudam os recém-chegados a construir suas casas e cuidam desde o calçamento das ruas até a organização da segurança. "Chegamos há poucos anos da região do Chapare. Se não fossem a juntas, não sei o que teria sido de nós", diz Maria. Ela hoje vive como vendedora ambulante, mas antes de ir para a cidade, sua família se dedicava ao cultivo tradicional de coca, que é usada secularmente para chás e para a mastigação. O governo implementa desde o final dos anos 90, a erradicação forçada e a substituição do cultivo da coca. A folha de coca, entretanto, dá ao plantador uma renda média quatro vezes superior à do camponês típico, como aponta o vice-presidente eleito, Álvaro Garcia Linera, num artigo para a revista brasileira "Diplomacia, Estratégia e Política". "Evo [que iniciou sua carreira como líder cocaleiro] prometeu acabar com essa perseguição aos plantadores de coca. Vamos ver. Não acredito mais nos políticos", diz Maria. Ao menos nisso as Marias de Santa Cruz e de El Alto concordam. O descrédito em relação aos partidos tradicionais é enorme. Uma indicação disso pode ser vista na profunda renovação do Congresso: apenas 17 congressistas foram reeleitos entre 157 (130 deputados e 27 senadores). E, desses 17 reeleitos, 6 são do MAS (Movimento ao Socialismo, partido de Evo). O MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), que era até há pouco a maior agremiação política do país, elegeu apenas sete deputados e um senador. Como novidade no cenário político aparece a frente chamada Podemos, que conta com o apoio maciço do empresariado cruzenho. "Esse descrédito, essa desconfiança, fragiliza ainda mais o sistema político do país. Cada um parece tentar resolver o problema para seu lado, o que de certa forma acaba 'balcanizando' o sistema de tomada de decisões do Estado", diz o cientista político Larry Arraigoti, da Universidade da Flórida. Para ele, essa "balcanização" poderia resultar eventualmente no esfacelamento territorial da Bolívia. Entretanto, indo na direção oposta à apontada por Arraigoti, os principais grupos de oposição a Evo Morales parecem estar dispostos a dar uma trégua ao novo presidente. Na semana passada, Gabriel Dabdoub e diversos empresários de Santa Cruz receberam o presidente eleito na sede da Cainco (um prédio envidraçado de 20 pavimentos que se destaca na plana Santa Cruz). Os insistentes pedidos de autonomia e as ameaças veladas de secessão que os empresários vinham fazendo foram substituídos por trocas de gentilezas. Mesmo assim, um dos empresários presentes disse que essa calmaria tende a ser passageira, pois ele acredita que a instabilidade política vai impedir que o governo ataque problemas mais prementes na economia do país. Uma economia que, apesar do tom otimista do presidente da Cainco e de números positivos recentemente divulgados, é ainda bastante frágil. Em 2005, o país registrou um recorde histórico nas exportações: US$ 2,7 bilhões, segundo dados preliminares do Ministério de Indústria e Comércio. Esse resultado mostra um crescimento de 80% das exportações. Isso se deu graças aos bons preços internacionais do gás natural, principal produto da pauta boliviana, o que provocou o crescimento das vendas em cerca de 60%. As exportações agropecuárias cresceram quase 30%, enquanto as vendas de minerais subiram 16%. As exportações de produtos manufaturados, por outro lado, caíram 2,8%. Hoje, 90% das exportações do país se dirigem para apenas dez mercados - Brasil, EUA e Venezuela, sozinhos, são destino de quase 60% das exportações bolivianas. "Isso mostra a pouca competitividade do setor exportador", diz Roberto Mustafá, presidente da Confederação de Empresários Privados da Bolívia. Um levantamento das entidades empresariais indica que dez empresas concentram quase 60% das exportações totais bolivianas, o que mostra que poucas empresas se orientam para disputar o mercado externo. Mustafá diz que o principal problema por que passa o país é a falta de crédito. "E quem dará crédito se o país continuar em convulsão?", pergunta ele, ao defender a pacificação dos ânimos na Bolívia. Os investimentos diretos estrangeiros (IDE) também apontam para uma situação preocupante. Depois de atingirem um pico histórico no final dos anos 90, a redução foi marcante. O IDE líquido registrado em 1998 foi de US$ 1,026 bilhão, caindo paulatinamente após o ano 2000 - quando registrou US$ 736 milhões. Em 2003 e 2004, anos de grande convulsão social, foram registrados US$ 197,4 milhões e US$ 116,5 milhões respectivamente. Em 2005, o IDE na Bolívia caiu a US$ 31,5 milhões. De onde virão os investimentos então? Os políticos do MAS são quase unânimes: da China e da Venezuela. O senador Santos Ramírez, candidato do MAS eleito presidente do Senado, disse logo após sua posse: "Teremos de buscar investimento entre os amigos. China e Venezuela são amigos afinal de contas. Os chineses, entretanto, são conhecidos por prometer mundos e fundos quando se trata de investir, mas não se notabilizam por concretizar totalmente suas promessas. Políticos sérios saem propalando, em diversas partes do planeta, que estão prestes a fazer 'negócios da China', mas acabam tendo de se contentar com pouco", afirma Ramírez. Morales deu o passo inicial, indo a Pequim e convidando os "aliados ideológicos", como ele chamou o governo comunista chinês, a investir na Bolívia. A resposta meio lacônica do presidente chinês, Hu Jintao, foi de que estimularia as empresas chinesas a fazê-lo. Já o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, um aliado de primeira hora de Morales, deve mesmo investir na Bolívia, segundo analistas independentes. A extensão disso é que ainda permanece incerta, dizem. Dentro dessas incertezas todas, Morales dá sinais de que pretende agradar, pelo menos por enquanto, todos que o pressionam. Num gesto simbólico que deve agradar bastante Maria Pankara, de El Alto, ele realizará amanhã um ritual de posse andino, em Tiwanacu, para mostrar que não se distanciou desse eleitorado tão propenso a ir às ruas. No domingo, entre os chefes de Estado que estarão em La Paz sobressai-se o presidente chileno, Ricardo Lagos. Em Santa Cruz, a maior parte do empresariado defende esquecer a querela histórica com o Chile - país que tirou a saída para o mar da Bolívia -, transformando o vizinho num consumidor do gás boliviano. O gás é o único produto que a Bolívia não vende para o Chile. Afinal de contas, negócios são negócios. A ideologia vem a depois, diz Maria Puentes.