Título: Governo dá um passo atrás
Autor: Almeida, Daniela
Fonte: Correio Braziliense, 17/05/2010, Brasil, p. 6

Alterações no Programa Nacional de Direitos Humanos representam recuo em pontos polêmicos abordados por série de reportagens do Correio, mas são insuficientes para alguns setores da sociedade e entidades de classe

O recuo do governo no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) em alguns dos itens apontados por representantes de setores e especialistas em uma série de reportagens especiais realizadas pelo Correio/Estado de Minas, não foi suficiente. Essa é a avaliação de entidades, juristas e parlamentares ligados aos temas. Segundo os entrevistados, os principais problemas continuam a ser o desbloqueio da convocação de referendos e plebiscitos, um forte instrumento de governos com democracia parcial, e a sugestão que o plano faz em alguns trechos que, colocados em prática, poderiam significar a intervenção no Legislativo e no Judiciário. Divulgadas quinta-feira, por meio do decreto presidencial 7.177/2010, a atualização no PNDH incluiu a revisão de sete itens e a revogação de duas ações. O maior número de mudanças ficaram a cargo das questões ligadas aos militares, primeiros a se manifestar contra o programa e protagonistas do estopim de uma verdadeira crise no governo Lula, que quase culminou com a saída do ministro da Defesa, Nelson Jobim, dos comandantes das forças armadas e do ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. A revisão fez ainda uma série de concessões às pressões sofridas por diferentes setores da sociedade. Foram revogados os itens que sugeriam a extinção de símbolos religiosos em repartições públicas e o acompanhamento editorial dos veículos de imprensa. Saíram também do plano a descriminalização do aborto, as penalidades à imprensa, a exigência de mediação antes de decisão judicial nos conflitos de terra o que dificultava a reintegração de posse em propriedades rurais invadidas e a proibição de que ruas e prédios públicos recebessem o nome de autoridades ligadas à tortura. Mas o PNDH manteve outros trechos polêmicos, como a defesa da união civil homossexual, a adoção de crianças por casais homo-afetivos e a concessão de direitos trabalhistas e previdenciários para prostitutas. A grande questão que continua aberta é o enfraquecimento dos poderes, onde grupos de pressão terão mais poder que Judiciário e Legislativo, explica Martim de Almeida Sampaio, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e advogado especializado em direito internacional humanístico. Essas mudanças, apresentadas em diversos itens, não modificam a espinha dorsal, que continua sendo controlar em parte o poder Judiciário e interferir no Legislativo e na educação. E isso é querer dar poder mais ao presidente da República, diz o advogado constitucionalista Ives Gandra. Na opinião de José Luiz Quadros de Magalhães, professor da PUC-MG e UFMG em direito constitucional, democracia, direitos humanos, as críticas feitas ao plano partiram da má compreensão do texto. Trata-se de um decreto presidencial que não tem força de lei, não pode mudar a Constituição. Ele mostra caminhos que partiram de setores específicos da sociedade civil. Foi feito muito barulho por nada. Magalhães defende que o poder responsável pela convocação do plebiscito é mero formalismo técnico. Os dois países que mais usam plebiscito no mundo são Estados Unidos e Suíça. Você pode dizer que eles não são democráticos? O que a gente tem que discutir é que tipo de plebiscito e como fazer. As várias formas de pensar é que têm de ser apresentadas no processo. Se temos uma imprensa livre e o debate fomentado junto à sociedade, não tem problema.

Insatisfeitos Concessões à parte, mesmo os setores em princípio beneficiados com as alterações manifestaram insatisfação com a revisão do plano. A Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) divulgou nota na semana passada, reforçando sua posição contra a descriminalização do aborto, a questão dos símbolos religiosos e as questões ligadas aos homossexuais. Para Daniel Saidel, secretário executivo da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB, o recuo do governo é na verdade um retrocesso aos planos anteriores, feitos no governo Fernando Henrique Cardoso. O governo ter recuado para o plano anterior demonstra alguma capacidade de escuta. Ainda não foi suficiente. No caso dos símbolos religiosos foi atendido, mas na questão do aborto, não. A Igreja não concorda com o aborto. A gente é contra o mal que a pessoa fez, mas não é contra a pessoa. Da forma como a fica (o texto, colocando o aborto como saúde pública), ainda traz uma perspectiva de descriminalização. É por isso que a gente não aprova mesmo a nova redação. Outro setor descontente foi o do agronegócio. A senadora e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu (DEM-TO), defende que a manutenção da mediação entre invasores e proprietários que tiveram suas terras invadidas, mesmo sem que isso seja condição anterior a decisão judicial, é inaceitável recentemente os ruralistas têm encampado uma forte campanha para reconhecer as invasões de terra como um crime. Na realidade, houve uma maquiagem para dar uma satisfação à reação que ocorreu pela imprensa e pela sociedade. Nos conflitos mediados, existe uma dúvida. Agora, que tipo de acordo eu me proponho a fazer com o invasor? Se alguém tem que ceder é quem prometeu a reforma agrária, não quem pagou pela terra. O Estado diante de um crime tem que agir, não propor isso. Essas coisas vêm disfarçadas, mediação é uma palavra bonita. A intenção é confundir as pessoas, dizer que os ruralistas são contra a paz. Enquanto a Constituição e o Código Penal digam que invasão é crime, não posso deixar o Estado me colocar em uma situação vexatória, diz a senadora. O único setor que manifestou publicamente satisfação com as mudanças feitas na terceira versão do PNDH foi a imprensa. Em nota aos veículos de comunicação, associações representativas como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), a Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ), consideram louvável a iniciativa do governo de suprimir pontos críticos que ameaçavam a liberdade de expressão. Apesar das alterações, a nova redação do PNDH quanto à imprensa estabelece a criação de um marco legal, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados. No comunicado, as entidades fizeram a ressalva de que a medida se paute pelo respeito aos princípios constitucionais da liberdade de expressão. É fundamental assinalar que os serviços de radiodifusão, assim como todos os setores da sociedade brasileira, já estão sob a égide das definições legais referentes aos direitos humanos, diz a nota.