Título: Porta de entrada
Autor: Rodrigo Carro
Fonte: Valor Econômico, 26/01/2006, Valor Especial / EMPRESA & COMUNIDADE, p. F1

Projetos da iniciativa privada em parceria com Ongs procuram superar as lacunas educacionais que limitam o acesso dos jovens brasileiros ao mercado de trabalho

Dos 180 milhões de desempregados existentes no mundo, cerca de metade são jovens de 16 a 24 anos. Os números da Organização Internacional do Trabalho (OIT) refletem uma tendência mundial que, no Brasil, ganha contornos ainda mais dramáticos: as lacunas educacionais e a falta de capacitação profissional limitam o acesso de muitos jovens ao primeiro emprego. Essas dificuldades atraíram a atenção de empresas e organizações não-governamentais, que passaram a oferecer cursos e programas de qualificação principalmente aos jovens de baixa renda. Uma análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra a gravidade do problema do desemprego entre os jovens brasileiros. Entre 1993 e 2003, o número de desempregados na faixa dos 16 aos 24 anos praticamente dobrou no Brasil, subindo de 1,92 milhão para 3,83 milhões. Mesmo entre os jovens que estão empregados nem sempre a situação é confortável. "No Nordeste, de cada dez jovens empregados, oito estão no mercado informal", informa José Carlos Ferreira, diretor-adjunto da OIT Brasil, que prepara dois "papers" sobre o tema. Na análise do economista Márcio Ferrari, da Coordenação de Emprego e Renda do IBGE, os números do desemprego entre os jovens brasileiros acompanham uma tendência natural verificada em outras partes do mundo. "Sem experiência, os jovens não têm muito a oferecer ao empregador. Custa mais caro treiná-los do que empregar alguém mais experiente", argumenta Ferrari. Apesar do custo do processo de capacitação, o retorno em termos sociais é expressivo, garante Márcia Tedesco Dal Sacco, gerente de Comunicação e Responsabilidade Social da Aché Laboratórios. Desde 2004, a companhia desenvolve em conjunto com a Fundação Iochpe, organização civil sem fins lucrativos, o programa Formare. A intenção é fornecer conteúdo profissionalizante a jovens de baixa renda, preparando-os para o mercado de trabalho. As aulas são ministradas por voluntários (funcionários do laboratório) numa escola que funciona dentro da sede da Aché, em Guarulhos (SP). O treinamento dura um ano, em período integral. Uma turma de 20 alunos, a maioria com mais de 17 anos, é selecionada anualmente. "Eles saem formados na função de assistente de produção farmaco-química e cosmética", explica a gerente Márcia. Para fevereiro, está prevista a entrega dos diplomas do ano anterior e o início de uma nova turma. "Já sabemos que vamos contratar alguns deles", adianta ela, acrescentando que o orçamento anual do Formare fica em torno de R$ 200 mil. A contratação por uma grande empresa foi suficiente para alterar drasticamente a rotina do paulista Alessandro Santana de Santos, de 18 anos. Morador da região que fica na divisa entre os municípios de São Paulo e Itapecerica da Serra, ele nunca havia entrado num hotel até ser selecionado para o programa Educando para a Vida, da rede hoteleira Marriott em parceria com a Ong Youth Career Initiative, baseada em Londres. Atualmente, Alessandro trabalha na governança (departamento que cuida da manutenção e limpeza) no Renaissance São Paulo Hotel. "Agora, já penso em trabalhar na controladoria", diz ele, referindo-se ao setor responsável pelo controle financeiro do hotel. Se tudo der certo, ele pretende num futuro próximo ingressar numa faculdade de matemática ou contabilidade. Para chegar a ser contratado, Alessandro teve de passar por um curso de vinte semanas, com carga de 800 horas-aula. Ao todo, foram selecionados 40 estudantes de escolas estaduais de São Paulo. A diretora de Recursos Humanos da Marriott no Brasil, Veridiana Fernandes, explica que no processo de seleção foi dada prioridade aos jovens carentes vindos de famílias desestruturadas. "O objetivo não é formá-los em hotelaria e sim dar a eles um mínimo de confiança e auto-estima para que possam buscar oportunidades no mercado de trabalho", ressalta Veridiana. Mesmo assim, cerca de dez jovens formados na primeira turma do Educando para a Vida, no ano passado, foram aproveitados em hotéis da rede. Dono da empresa de software Contmatic Phoenix Sistemas Administrativos Integrados, o tecnólogo de computação Sérgio Contente, hoje com 48 anos, transformou sua experiência como adolescente de baixa renda num projeto de cunho social. Oito meses atrás, criou - em parceria com fornecedores e clientes - a Ong Idepac (Instituto de Desenvolvimento Profissional Amigos Contabilistas, Empresários, Profissionais Liberais e de Informática). "Meu pai foi embora quando eu tinha 12 anos. Minha mãe trabalhava como diarista e, à noite, lavava roupa para fora", relembra Contente, que estudou em escolas públicas e concluiu seu curso superior no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). À frente de uma empresa com 160 funcionários, Contente recrutou, entre seus fornecedores e clientes, voluntários dispostos a dar aulas gratuitamente no Idepac. Em um prédio situado no bairro do Tatuapé, em São Paulo, Contente instalou 200 microcomputadores novos, utilizados tanto pelos alunos das turmas regulares (noturnas) como pelos estudantes dos cursos avulsos (diurnos). Nos cursos regulares, são ministradas 500 horas de aulas que capacitam o jovem a trabalhar como auxiliar de escritório. Nos avulsos, que duram um mês e são oferecidas noções de contabilidade, informática e manutenção de redes e hardware, entre outras matérias. Só nos primeiros oito meses de funcionamento do Idepac, 1.250 jovens foram beneficiados. Desse total, cerca de 200 foram empregados em escritórios de clientes da Contmatic Phoenix. "A maioria dos alunos tem idade entre 16 e 24 anos e renda familiar per capita de meio a um salário mínimo", detalha Contente. Voltado também para os jovens, mas numa vertente mais tecnológica, está o Garagem Digital, programa de inclusão digital desenvolvido pela HP Brasil e pela Fundação Abrinq. O projeto-piloto, em 2001, aproveitou o espaço físico da Ong Meninos do Morumbi, em São Paulo. Hoje, o Garagem Digital atende jovens de São Mateus, na extrema Zona Leste de São Paulo, e de três cidades cearenses (Beberibe, Limoeiro do Norte e São Gonçalo do Amarante). No Ceará, o programa conta com o apoio do governo estadual e do Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec). Todas as garagens são equipadas com computadores ligados à internet, impressoras, aparelhos de data show e câmaras digitais fornecidas pela HP. Com essas ferramentas tecnológicas, jovens excluídos passam por um treinamento de 300 horas-aula. "Começamos com a intenção de dar a esses jovens a oportunidade de um contato com a tecnologia digital. Mas logo nos perguntamos: de que adiantava saber sobre tecnologia se não havia uma perspectiva de entrada no mercado de trabalho?", conta Juarez Zortea, que acumula as diretorias comercial e de responsabilidade corporativa da HP Brasil. A partir do segundo ano e, principalmente, do terceiro começou a funcionar a Rede de Oportunidades. O sistema eletrônico permite a divulgação de oportunidades profissionais e educacionais para os participantes do Garagem Digital. Em dezembro de 2005, os jovens de São Mateus, na periferia de São Paulo, realizaram como projeto de fim de curso uma feira de informática. "Foi uma forma de compartilhar com a comunidade aquilo que aprenderam", lembra Zortea, ressaltando que área possui um Índice de Desenvolvimento Humano comparável ao dos mais pobres municípios do país. Na esfera governamental, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aposta, desde 2003, no programa Primeiro Emprego. Até o ano passado, 325,66 mil jovens na faixa de 16 a 24 anos haviam sido beneficiados (empregados ou qualificados), de acordo com números parciais do Ministério do Trabalho. Segundo o ministério, 7.660 empregadores aderiram ao programa até agora. Em sua maioria, os jovens colocados têm idade entre 20 e 24 anos e escolaridade média incompleta.