Título: O caro 'sonhoduto' da América do Sul
Autor: Rodrigo Uchôa
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2006, Internacional, p. A9

Empenhados em potencializar suas enormes reservas de gás natural, líderes de tendência esquerdista em toda a América do Sul estão envolvidos em sérias negociações visando à construção de uma rede de gasodutos com extensão de milhares de quilômetros para suprir a crescente demanda e livrar-se da influência econômica americana. Mas especialistas no setor petrolífero dizem que o "show de companheirismo" pode sair pela culatra, se o caro "sonhoduto" tornar-se realidade, pois a rede de gasodutos poderá gerar oposição entre vizinhos no continente, à medida que passarem a competir por clientes. Em Brasília, na semana passada, os presidentes do Brasil, Argentina e Venezuela discutiram planos sobre a construção de um gasoduto com 8 mil quilômetros de Caracas até Buenos Aires atravessando a floresta amazônica brasileira, sem faltar conexões à Bolívia, Paraguai e Uruguai. "Esse gasoduto é vital para nós", disse Hugo Chávez, presidente venezuelano. Ele disse que Venezuela e Bolívia "têm gás para 200 anos" e podem fornecer o combustível ao Brasil e à Argentina, países onde está crescendo a demanda por gás para queima em usinas de eletricidade, cozinhas e automóveis. A iniciativa também resultaria em distanciar a região de políticas de livre mercado dos EUA e delineadas no Consenso de Washington. O gasoduto, que custaria US$ 20 bilhões e poderia ser construído num prazo de cinco a sete anos, "é o início do Consenso Sul-Americano", disse Chávez. Os líderes decidiram reunir-se na Argentina em março para uma avaliação dos planos que estão sendo preparados por suas petrolíferas estatais. Mas o gasoduto poderá colocar Bolívia e Venezuela em curso de colisão econômica, porque a Bolívia já é o maior exportador de gás para o Brasil e quer incrementar as exportações para a Argentina através de outro gasoduto proposto, que seria bem mais curto. Ao interligar seu gasoduto à rede mais ampla, a Bolívia "estaria submetendo suas perspectivas de produção àquilo que for ditado por Chávez", diz Andres Stepkowski, consultor do setor que trabalha na Bolívia. Chávez disse que os países não querem competir e acredita não haver "qualquer receio na Bolívia, mas sim alegria, com o fato de que esse projeto vai integrar a todos". A Bolívia já perdeu uma grande oportunidade de exportar, em conseqüência do insucesso de um plano multibilionário (em dólares) de construção de um gasoduto que atravessaria os Andes e chegaria a um porto no oceano Pacífico, no Chile, onde o gás seria liqüefeito para ser transportado para o México e para o sul da Califórnia. Evo Morales, presidente boliviano, participou da liderança de uma rebelião contra esse plano, organizando um levante que depôs o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, em que morreram 60 pessoas. A principal queixa foi uma já antiga disputa de fronteira: muitos bolivianos ainda reagem emocionalmente às conseqüências da guerra do Século XIX contra o Chile, que os deixou sem saída para o mar. A Sempra Energy, empresa de San Diego, então negociou um contrato de suprimento com a Indonésia. Mas o vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, disse que o novo governo quer negociar um traçado para o gasoduto capaz de abastecer uma clientela na orla do Pacífico através do Peru. Essa rota seria politicamente palatável devido às boas relações entre a Bolívia e o Peru, e o gasoduto poderia abastecer comunidades indígenas pobres nos altiplanos bolivianos onde o gás é raro. Mas pode ser tarde para a Bolívia - o Peru já está explorando seus próprios campos de gás nos Andes e espera iniciar em 2009 os embarques originados de uma usina de liqüefação de gás. Se um gasoduto Bolívia-Peru chegar a ser construído, os dois países "estarão disputando os mesmos mercados: México e EUA", diz Pietro Pitts, editor-chefe da LatinPetroleum.com, na Venezuela. Coerente com a visão socialista de Chávez, que objetiva reduzir a influência política e econômica "imperialista" dos EUA, o gasoduto maior seria construído e operado pelas estatais venezuelana e brasileira - PDVSA e Petrobras. Chávez disse que cada um dos países arcaria com uma parcela dos custos de construção, sendo que a parte correspondente à Venezuela atingiria "vários bilhões de dólares", embora o montante exato venha a ser determinado somente na cúpula em março na Argentina. Entretanto, ele sugeriu que os países não pagariam a conta toda, e que seriam necessários investimentos externos. Empresas chinesas, cujos nomes Chávez não revelou, já manifestaram seu interesse, disse ele. O projeto poderia se pagar em cinco a oito anos após concluído.

Mas os obstáculos tecnológicos na construção de um gasoduto através da Amazônia - sem falar naspreocupações ambientais -, poderiam elevar os custos para até US$ 40 bilhões, segundo especialistas no setor. "Tente construir um gasoduto através daquele lodaçal - é factível, mas o preço seria tão alto que o projeto seria na prática inviável", opina Stepkowski.

Chavez discorda, exemplificando que a Rússia construiu um gasoduto que se estende por milhares de quilômetros até a Europa.

Mas o Brasil poderá revelar-se relutante em investir tão pesado, após se comprometer a gastar US$ 18 bilhões para reduzir sua dependência de gás importado com a exploração de enormes campos ao largo da costa meridional do país.

O fator custo também poderá inibir a construção de um gasoduto Bolívia-Peru. A estatal boliviana vive dificuldades de caixa desde que o setor foi privatizado nos anos 90, e a maioria das companhias estrangeiras que adquiriram os ativos congelaram investimentos devido à incerteza política.

Em campanha, Morales afirmou que a riqueza do gás boliviano foi pilhada na privatização e prometeu estatizar o setor. Desde que foi eleito, abrandou o discurso, mas especialistas dizem que poderá levar seis meses até que haja clareza sobre o clima para investimentos.

As empresas que estavam por trás do plano de transportar gás boliviano para o Chile - BG Group, do Reino Unido; BP, também britânica, por intermédio de sua participação de 60% na Pan American Energy; e a Repsol YPF não confirmaram interesse em financiar um gasoduto Bolívia-Peru.

Se algo pode ser dito com alguma certeza é que provavelmente levará anos de planejamento para decidir se os gasodutos deverão ser construídos, diz Larry Chorn, professor de engenharia petrolífera na Escola de Minas, no Colorado.

"Compatibilizar contrato, financiamento e construção não envolve um esforço trivial", diz. "As preliminares [contratuais e técnicas] consomem de quatro a seis anos antes de um início das obras."