Título: Um modelo regulatório com o sinal trocado
Autor: Elena Landau
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2006, Opinião, p. A10

As regras para o setor elétrico afugentam investimento privado no setor

Recente estudo do Banco Mundial analisou o ambiente para investimentos privados no Brasil e apontou elementos de fragilidade institucional, que reduzem o interesse do capital privado. Destaca, entre outros fatores, a elevada carga tributária, a instabilidade do marco regulatório, a falta de autonomia das agências reguladoras e a intervenção do Judiciário no cumprimento dos contratos. O estudo trata do investimento em geral, mas suas observações, quando aplicadas ao setor elétrico, confirmam o que os investidores privados dedicados ao setor alertam há muito tempo. A carga tributária que incide na conta de luz é muitíssimo elevada, sendo que 43% dessa conta destina-se ao pagamento de impostos e encargos e apenas 28% à compra de energia. Na Inglaterra, a carga tributária representa menos de 10% da conta e a compra de energia responde por mais de 50%. Além disso, mesmo sendo a distribuição de energia elétrica um serviço público considerado essencial, os Estados, mesmo aqueles que optaram pelo critério da essencialidade na fixação de alíquotas, aplicam a essa atividade as maiores alíquotas de ICMS. Ela é superior à da cachaça simplesmente porque, nesse mercado, é mais fácil de arrecadar. Apesar de financiada por recursos vinculados, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) perdeu a autonomia financeira com o contingenciamento dos seus recursos. Em 2005, a agência teve acesso a menos de 50% do seu orçamento. O recurso é pago pelos consumidores mas não cumpre sua finalidade de sustentar a agência reguladora, pois é utilizado, de fato, para aumentar o superávit fiscal. Além disso, a regulação muda a cada governo e o Judiciário intervém sistematicamente na definição das tarifas, uma função legal da Aneel. Além dos problemas mencionados no relatório do Banco Mundial, há ainda uma questão de fundo a ser resolvida. O modelo atual de expansão do setor se baseia em taxas de remuneração dos investimentos abaixo das taxas de mercado. Como atrair o investimento privado se o modelo de expansão do setor só se viabiliza com o investimento estatal? A expansão se faz através de leilões nos quais os vários participantes competem por empreendimentos de geração, hídrica ou térmica. Nestes leilões - três já foram realizados - o governo define o preço máximo a ser pago pela energia gerada no empreendimento. No último leilão iniciou-se o processo de licitação de novos empreendimentos. Nos anteriores vendia-se apenas energia "velha", isto é, oriunda de empreendimentos já depreciados do ponto de vista econômico. Em todos eles a participação estatal assegurou o relativo sucesso do leilão. Relativo porque o leilão não conseguiu contratar a totalidade da demanda das distribuidoras, a despeito da participação das estatais. Na verdade, o termo "leilão" descreve mal o processo. Em um leilão, ou se busca o melhor preço para uma dada quantidade do bem ofertado ou a maior quantidade possível a ser oferecida a um dado preço. No caso da energia, nem preços nem quantidades são definidos livremente. É, na realidade, um grande rateio de energia que apenas recebeu o nome de leilão porque a designação dá uma roupagem de mecanismo de mercado e, portanto, imparcial entre capitais privados e estatais, o que não ocorre de fato.

O leilão de energia é um grande rateio e o seu nome apenas esconde essa realidade em uma roupagem de mercado

A intervenção estatal no rateio se dá em vários aspectos. O maior player é a Eletrobrás que, junto com outras estatais e através de suas subsidiárias (Furnas, Chesf e Eletronorte), responde por cerca de 80% da geração de energia. Se a Eletrobrás fosse um grupo de controle privado, os órgãos de defesa da concorrência certamente impediriam a presença dominante de um único participante em um leilão desse tipo. E se a Eletrobrás se comportasse, de fato, como sociedade de economia mista, buscando adequado retorno para seus acionistas, dentre os quais sobressai o Tesouro Nacional, jamais teria aceitado o resultado do rateio. Nos leilões de energia, o preço, comandado pela expressiva atuação da Eletrobrás, ficou abaixo tanto do custo marginal de expansão quanto do valor que viabilizaria a taxa mínima de retorno de investimentos, inferior inclusive à definida pelo próprio órgão regulador. O rateio acaba, assim, por gerar um custo baixo de expansão, afugentando os capitais privados e prejudicando o valor de mercado da própria estatal. De forma oblíqua, os acionistas da Eletrobrás, e o maior deles é o contribuinte, estão subsidiando os preços de energia. Nesse processo, a curva de demanda é dada pelas distribuidoras de energia, que apresentam individualmente suas projeções para o mercado a ser atendido na sua área de concessão nos próximos cinco anos. Num leilão de fato, dada a curva de demanda agregada para o setor, as demais variáveis preço e quantidade ofertada se ajustariam. No entanto, neste rateio a própria curva de demanda das distribuidoras pode ser deslocada pelo leiloeiro. Como diz um empresário setor, é como jogar vídeo game com o joy stick na mão do adversário. E quem é o leiloeiro? O governo. A intervenção do governo no processo também se dá através da presença de membros do Executivo, ligados à área de energia, nos Conselhos de Administração das empresas do Sistema Eletrobrás. Ou seja, as mesmas pessoas que fixam o preço teto ou determinam os empreendimentos a serem leiloados estão presentes nos conselhos que deveriam definir a estratégia das empresas que participam do leilão. O conflito de interesses que essa situação cria não seria admitido no setor privado. Em geral, não se aplica para o setor público o mesmo rigor das regras de defesa da concorrência e do consumidor utilizadas para o setor privado, na medida em que a atuação do Estado é feita na suposição de que este atua sempre defendendo o interesse público. Pode-se discutir longamente o que é interesse público quando se discute investimento em energia elétrica. Por exemplo, defende-se melhor o interesse público com uma tarifa subsidiada no curto prazo ou com uma sinalização correta de preços para estimular o investimento privado? Nada contra a presença estatal, desde que atuando de forma competitiva, e que os recursos procedentes do Tesouro, ainda que de forma indireta, não fizessem tanta falta à saúde e à educação, e a outras funções típicas de governo, como segurança e regulação. O mesmo governo que contingencia os recursos da agência reguladora permite que os investimentos de suas empresas não remunerem corretamente o capital. Tudo isso não faz sentido e, mais uma vez, está em jogo a noção de interesse público. Assim, mesmo que o Brasil cumpra a agenda de mudanças do Banco Mundial na esfera institucional, não vai atrair investimentos privados no setor elétrico, pois o modelo regulatório do setor não tem esse objetivo, muito ao contrário. O sinal está trocado.