Título: Estagnação de 2005 pode ter efeitos danosos a longo prazo
Autor: Heloisa Magalhães
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2006, Especial, p. A12

Entrevista Empresas já pararam de investir, diz David Kupfer

O professor David Kupfer, especialista em indústria, do Instituto de Economia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avalia que a política econômica do governo Lula - a seu ver "profundamente equivocada" - pode trazer conseqüências mais danosas a longo prazo, gerando no empresariado propensão menor a investir. Para ele, já vivemos o cenário em que até mesmo as indústrias brasileiras mais modernas e bem gerenciadas são refratárias a aplicar recursos em desenvolvimento tecnológico o que prejudica a conquista de maior competitividade. Avalia que nossa indústria é muito capacitada nas atividades de processos, normalmente comandadas por máquinas, como petroquímica, siderurgia, exploração de petróleo e celulose. Em contrapartida, em outras atividades, intensivas quanto à interação entre pessoas, "aparentemente aqui não se faz bem" , diz. Cita como exemplos o complexo eletrônico, a microeletrônica e o software. Kupfer acredita que a indústria tradicional, de modo geral, terá muita dificuldade em competir com a China, onde a eficiência é muito mais alta que a brasileira. "Eles têm máquinas mais modernas, escala produtiva maior e industrialmente estão mais bem montados." Por isso, o professor defende que o Brasil adote estratégias de Estado para tocar uma política industrial estruturada, seletiva nos instrumentos e nos alvos. "Essa política tem que levar em conta que, nos produtos muitos simples, os chineses vão entrar forte, e nos muitos complicados não temos escala nem tecnologia, portanto ela vai exigir muita sabedoria."

Valor: O país fechou 2004 com expectativa forte de crescimento e com sinais de recuperação de investimento, mas a expansão econômica em 2005 foi modesta. Quais os riscos dessa interrupção? Vamos voltar a crescer? David Kupfer: Vamos voltar a crescer, mas o que ocorreu em 2005 significa um atraso na retomada. Em economia, os fenômenos não são lineares. Seria muito simples imaginar que o processo de crescimento vai se atrasar em seis meses. Tenho certo receio de que o que ocorreu em 2005 possa trazer conseqüências mais danosas a longo prazo.

Valor: Por quê? Kupfer: Pelo fato que decisões de investimento que estavam amadurecendo foram sustadas e isso vai gerar no empresário uma propensão menor a investir.

Valor: Qual foi o principal fator da interrupção do crescimento? Kupfer: Acho que foi a política macroeconômica profundamente equivocada, o que agora é consenso. Em meados do primeiro semestre escrevi para o Valor uma artigo que chamei "De panacéia a placebo", pois estava percebendo que as taxas de juros elevadas já não cumpriam papel nenhum no chamado equilíbrio macroeconômico brasileiro. Falava que o Banco Central estava mantendo essa taxa apenas por um conservadorismo excessivo. A taxa de juros alta bateu no câmbio, que foi para um nível que está muito errado. A combinação desses fatores gera um resultado muito ruim nas expectativas de rentabilidade, que é o fator mais relevante para o empresário. Há um conjunto importante de empresas que não estão investindo ou investem muito pouco, como no setor de siderurgia. É um desafio explicar o comportamento da siderurgia brasileira. Trata-se de setor ganhador, mas que investiu muito pouco, apesar de a mudança econômica, que vem desde 1990, ter sido benéfica. As empresas foram privatizadas, ganharam eficiência, a abertura foi positiva, mas o ritmo de investimento é fraco. Há projetos que estão começando agora, mas sobre os quais se falava há dez anos. A siderurgia está num grau de dependência do mercado externo que não é desejável. Não é exportadora stricto senso, depende do mercado interno. Mas como o mercado doméstico aparentemente não se expande, os empresários não querem fazer plantas exclusivamente exportadoras, pois o risco é muito alto. É um setor muito sensível a ciclos de preços. Como a capacidade existente é suficiente para um mercado que cresce lentamente, os investimentos são adiados ou não são realizados. Siderurgia e celulose são exemplos de setores vencedores do processo de abertura e muito relacionados a insumos básicos, mas que investem pouco. Se isso acontece com os vencedores, os setores perdedores é que não vão investir, ao menos por enquanto. Caso perdurasse, o crescimento de 2004 teria tido a capacidade de dinamizar o mercado interno, tornar mais favoráveis as expectativas dos empresários, que levariam os projetos à expansão. Os empresários teriam um "mix" de mercados interno e externo como horizonte. A política macroeconômica foi muito danosa para o mercado interno em 2005.

Valor: A indústria brasileira está avançando tecnologicamente?

Nossa indústria se modernizou nos últimos 15 anos, mas de uma forma heterogênea"

Kupfer: A resposta é sim e não. A indústria brasileira tem uma trajetória de excelência, com empresas que conseguem engatar processos de modernização e até mesmo de inovação e, por outro lado, há as que estão excluídas desse processo. Veja o setor têxtil brasileiro. Em qualquer comparação que se faça, essa indústria tem um nível de competitividade baixa. Se for feito um ranking no país, ela está em 40º lugar. Mas tem uma nata de empresas que é ultracompetitiva.

Valor: Na sua opinião, o acesso à tecnologia está se ampliando? Kupfer: Aí há um enigma que não sei explicar, mas percebo. Existe uma capacidade brasileira de produzir em determinadas circunstâncias muito bem, e em outras, muito mal. É difícil explicar, não se sei se teria que trazer elementos históricos, sociológicos, culturais, mas de modo geral, o Brasil consegue avançar mais no que se chama de indústria de processo do que nas indústrias de montagem. A indústria de processo é normalmente comandada pela máquina, como a petroquímica, siderurgia, exploração de petróleo, celulose. Já em outras atividades, que são muito intensivas quanto à interação entre pessoas - um tem que fazer algo para que o outro prossiga -, aparentemente aqui não se faz bem. Fazemos automóveis porque são multinacionais muito experientes, que usam técnicas gerenciais extremamente poderosas. Os empresários dizem que a mão-de-obra brasileira é criativa, dócil e que aprende bem. Mas quando sai desse mundo mais comandado pelo processo parece que a gente não tem a mesma competência. Só que são setores decisivos no crescimento econômico atual - microeletrônica, complexo eletrônico, software.

Valor: O país tem setores preparados para concorrer com a China? Kupfer: O que se tem no país é uma indústria que se modernizou nos últimos 15 anos, mas de forma heterogênea. Aqui no núcleo de indústria do Instituto de Economia da UFRJ, a gente diz que é uma trajetória de modernização polarizada. Há pólos que se modernizam e o outros que atrasam. Os chineses estão fazendo um processo planejado de avançar em direção a maior conteúdo tecnológico da produção. Um exemplo ótimo é o plástico. No Brasil, é um setor muito pequeno. Deveria ser maior, diante do grau de renda, população e o papel da petroquímica. Já a indústria de plástico chinesa é enorme, centenas de milhões de chineses trabalham no setor de artefatos de plástico. Hoje, a indústria de plástico só é competitiva no mundo se usar máquina chinesa. Nos EUA, uma das poucas indústrias que sobrevivem é a de transformação de plástico. O pequeno fabricante de artefatos plásticos americano tem que comprar máquina chinesa, senão vai ser "jantado" pela competição com a China. Eles não só conseguiram fazer o produto final, como têm a visão de cadeia e vão adensando e a gente não teve e não tem essa estratégia. Somos um grande produtor de celulose, mas as nossas grandes empresas são associadas com grupos finlandeses ou suecos, que tratam diretamente com os fabricantes das máquinas.

Valor: Qual futuro da nossa indústria? É possível agora definirmos uma política ao menos para alguns setores? A política industrial apresentada no início do governo Lula está avançando? Kupfer: Não, a política industrial foi só traçada e não posta em prática. Nosso futuro vai aos trancos e barrancos. São quase 25 anos de crescimento medíocre. É muito tempo. Do mesmo jeito que se conseguiu superar um monte de restrições na década de 50 e entrar num trajetória de expansão, essas condições existem. Há muitos elementos extremamente favoráveis para o desenvolvimento industrial no Brasil. Temos matérias-primas, alguma capacidade tecnológica, uma boa capacidade produtiva em alguns setores e mão-de-obra. Há sistemas que estão funcionando mal, mas podem funcionar melhor, como o educacional, ciência e tecnologia, mas vai ser preciso muito governo. Estamos travados ainda em debates ideológicos de segunda categoria, como discutir se é melhor mais Estado ou menos Estado.

Valor: Mas a indústria está fazendo a sua parte, como investir em tecnologia? Kupfer: Acho que menos do que deveria. A indústria brasileira é heterogênea, polarizada. Mas a fração que é bastante moderna, bem gerenciada, o filé mignon, é muito refratária a investir, tem uma aversão a realização de investimento alto comparado por nível de risco. Tem uma estratégia muito baseada em controle, fiscalizar, reduzir custos e pessoal, evitar desperdício, muito focada em extrair o máximo do estoque de capital existente. Ninguém quer ser ineficiente, desperdiçar, mas há alternativas para mudar o estoque de capital, tentar abrir novas linhas. E no que diz respeito a pesquisa e desenvolvimento, não sei se a indústria brasileira não sabe fazer, quer gastar, mas não consegue ou não quer gastar. Mas é baixa a propensão em investir recursos em pesquisa. A grande empresa brasileira moderna, exportadora, inserida internacionalmente, é refratária a investir em desenvolvimento tecnológico.

Valor: Seria uma decisão de não investir para maximizar lucro ou porque o país tem pesada carga fiscal, a economia é instável,faltam recursos? Kupfer: É um pouco de cada coisa. Mas entra em questão o custo de oportunidade desse investimento. Há por um lado um investimento produtivo sujeito a riscos, que exige um esforço gerencial muito grande para produzir lucros, e, por outro lado, há outras formas de investimento muito rentáveis. Levando em consideração o valor real de ativos, dá uma conta complicada. Mas eu não acredito que nenhum empresário seja maximizador no sentido acadêmico. Porque não acredito em cálculo maximizador. Podem até se comportar dessa forma, mas o número de variáveis é muito grande, ninguém toma decisão exclusivamente a partir dessas contas. Mas o empresário tem um nível de intuição, de espírito empreendedor que o leva a se meter em certas coisas, abrir horizontes. Acho que esse espírito empreendedor é relativamente baixo. E teria causas na própria formação da empresa capitalista brasileira, como a estrutura empresarial se formou. Experimenta muito e faz pouco.

A indústria tradicional, de modo geral, terá muita dificuldade para competir com os chineses"

Valor: O que há de novo na indústria brasileira. Há algum processo interessante acontecendo? Kupfer: Existe um processo de interiorização que é importante, do ponto de vista da mancha industrial brasileira. A indústria está indo para o interior de São Paulo, Minas, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio. Outra coisa interessante é que está se aprendendo lentamente a gerenciar o que está sendo chamado de arranjos produtivos locais, que é uma visão da ação e política que está mais no nível do espaço local do que a das grandes regulações. Hoje, quem sai pelo país, encontra pólos de produção gerando emprego, renda, desenvolvimento local etc. Alguns são exportadores e são quase laboratórios de política pública. Tem política industrial, tem questões ligadas à tributação, à educação, tem que agir de forma muito concatenada.

Valor: A indústria brasileira está mais competitiva? Kupfer: Sim, mas a fração dos excluídos leva a resultados globais ainda muito abaixo do esperado. A produtividade cresceu muito, mas a da indústria como um todo, não. Está polarizando. O governo deveria tocar um processo que tem que ter duas direções. Uma é pegar os que já estão na ponta e dar condições para se tornarem empresas internacionais de fato, não somente exportadoras, mas protagonistas internacionais. E para os que estão atrás, é preciso entrar com política de apoio e modernização para ficarem mais parecidos com os que estão na frente. É preciso que o miolo da indústria se aproxime da ponta da indústria em termos de competitividade, qualidade, organização da produção, uso de tecnologia e eventualmente capacidade de criação tecnológica. Do jeito que está, a ponta vai andando e os outros vão ficando cada vez mais para trás. É preciso ter uma política mais convencional de modernização industrial e de capacitação de recursos humanos. É possível desenhar uma política de crédito para comprar uma máquina um pouquinho melhor para fazer as empresas melhorarem. Na ponta é jogo bruto. É preciso pegar nossas siderúrgicas fazê-las atuar como players internacionais. É preciso jogar nossas petroquímicas para fora. A agroindústria tem gerado ótimos resultados, mas não é um segmento gerador de desenvolvimento. Não tem nada a ver a relação entre crescimento de exportação e crescimento econômico. Não vai se encontrar coisas do tipo: quando a exportação cresce, a economia cresce. E quando não cresce, a economia não cresce. Você vai ver exportação crescer, mas a economia cair. Como aconteceu em 2005. A exportação é uma condição mas não é suficiente. Muito mais importante que o quando se exporta é o que se exporta. A pauta brasileira é de insumos básicos, commodities agrícolas, que têm que brigar contra os subsídios. Há alguma coisa da área de eletrônica, os automóveis, os aviões, mas no complexo eletrônico não tem quase nada, nas indústrias tradicionais muito pouco. O país exportou em 2003 para os Estados Unidos, que é o maior comprador do mundo, mais ou menos US$ 500 milhões de artefatos plásticos, mas a China exportou US$ 16 bilhões. Por que é tão pequeno no Brasil? Essa é uma indústria interessante porque exige pouco investimento e gera muito emprego. E é um setor que do jeito que vai irá ser varrido pelos chineses, pois não vai resistir à competição.

Valor: Que segmentos não resistirão à competição chinesa? Kupfer: Acho que a indústria tradicional de modo geral terá muita dificuldade. Não por uma desigualdade na competição em termos de mão-de-obra, mas porque a eficiência chinesa na produção desses bens é muito mais alta que a brasileira.

Valor: A estratégia tem que ser focada em nichos... Kupfer: Isso pode ser necessário. Do mesmo jeito que vai definir instrumentos em regimes especiais, talvez tenha que se entender que não se vai preservar setores inteiros, pois nem faz sentido. Terá que ser seletivo, permanentemente. A eletrônica fez um pouco isso. Decidiu fazer televisão de 14 e 20 polegadas. As muito grandes e as muito pequenas, não, vamos importar. Essa foi uma decisão espontânea da indústria. A política tem que entender isso, temos que ficar no 'midle end'. Os produtos muito simples, os chineses vão entrar, e os muito complicados não temos escala nem tecnologia. Isso pode significar que tem que ser seletivo nos instrumentos e nos alvos.

Valor: O governo do PSDB criou, mas não implementou, uma política industrial estruturada e as pesquisas mostram que podemos voltar a ter um tucano na Presidência. No governo Lula havia um discurso que a prática não confirmou. É caro ou inócuo ter política estruturada? Kupfer: Política industrial é complexa e cara. Ao mesmo tempo sofre dois tipos de risco. Primeiro, política industrial exige algum tipo de aposta que pode estar certa ou não. Tem um outro elemento. A política industrial é eminentemente política. Portanto, corre o risco de ser capturada, como os neoliberais gostam de dizer. Capturada significa que todo aquele aparato que se cria de fato não está a serviço do progresso da nação e está sendo usurpado por alguns. São coisas que alguns temem e tem que se considerar que é um temor razoável. Governantes podem governar bem ou mal e nem por isso não existirão. Essa questão é que deu um pouco a marca do governo Fernando Henrique, que fez política industrial, mas jurou de pé junto que jamais faria.