Título: Processamento de soja em xeque
Autor: Cibelle Bouças, Fernando Lopes e Marta Watanabe
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2006, Agronegócios, p. B10

Grãos Nó tributário abre espaço para que as indústrias esmaguem grão brasileiro na Argentina

Um nó tributário apontado pelas processadoras de soja que atuam no Brasil como o principal responsável pela tímida ampliação da capacidade de esmagamento no país na última década criou uma inusitada situação que poderá ganhar fôlego nesta safra 2005/06: o esmagamento de grão brasileiro em fábricas argentinas. De acordo com César Borges de Sousa, presidente da Caramuru Alimentos, de capital nacional, esse movimento, ainda que envolvendo volumes irrelevantes, começa a acontecer. Para ele, não é difícil que, em virtude de uma perda de competitividade originada na Lei Kandir, de 1996, o Brasil passe inclusive a importar do país vizinho farelo e óleo, produtos com maior valor agregado do que o grão. Dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) apontam que, em 1996, não houve exportações brasileiras de soja em grão para a Argentina. Em 1997, foram embarcadas 25.660 toneladas, e entre 1998 e 2001 também não houve negócios. De 2002 a 2005 as vendas aconteceram, mas em volumes irrisórios. No ano passado, por exemplo, as exportações para o sócio do Mercosul somaram 16.917 toneladas, ante embarques totais de 22,3 milhões, conforme a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). Para as indústrias, o cerne do problema que poderá ampliar esses volumes é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). Na geografia dos negócios dessas empresas, é comum encontrar fábricas em regiões pobres em lavouras, mas bem posicionadas para a exportação. Assim, o grão para processamento muitas vezes é comprado em outros Estados, e essa transferência interestadual paga 12% de ICMS sobre o valor de venda da soja. O valor equivalente é recolhido pelo Estado de origem e pode ser lançado pelas indústrias como crédito no Estado de destino, onde está a fábrica. As companhias então negociam com o Estado de destino uma compensação, prevista pela Lei Kandir, a ser debitada na venda de farelo e óleo. Para o farelo, a alíquota é zero; para o óleo, de 7%. E isso em caso de venda dos derivados em outros Estados do país, porque na exportação de farelo e óleo não há incidência de ICMS, como estabeleceu a Lei Kandir. Como o ICMS pago pela compra interestadual de matéria-prima é sempre superior ao incidente na venda dos produtos, a Abiove faz lobby contra a lei desde antes dela entrar em vigor. Em tempos de mercado com preço e câmbio adversos e maior rigor dos Estados de destino no reconhecimento e pagamento dos créditos gerados pela transferência interestadual de grãos, as críticas tornam-se ainda mais ácidas. Desde 2004, por exemplo, São Paulo - importante Estado de destino, entre outros motivos pela importância do porto de Santos, principal saída das exportações brasileiras de soja - não admite mais o crédito de insumos adquiridos de produtores que tenham sido alvo de incentivo fiscal com a concessão de créditos presumidos de ICMS em outros Estados. O governo paulista alega que esse crédito presumido na verdade reduz ou retira a tributação de ICMS teoricamente paga na venda da soja proveniente de Estados que concedem o benefício. Por isso, admite apenas o crédito do montante efetivamente pago na origem. Já o Paraná, que abriga o porto de Paranaguá (segunda principal saída dos embarques nacionais), chegou a ter restrição semelhante ao alegar que os produtos destinados à exportação já deveriam ser beneficiados com isenção de ICMS interestadual, já que as vendas ao exterior são desoneradas. Com base nessa alegação, o governo paranaense não admitia os créditos na compra interestadual de soja. Segundo Sousa, da Caramuru, com as diferenças entre as alíquotas do grão e dos derivados e as restrições estaduais, as indústrias acabam acumulando créditos de ICMS ao longo dos anos. Estima-se no mercado que o crédito acumulado pelas indústrias de soja alcance pelo menos R$ 100 milhões. Welinton Motta, gerente fiscal da Confirp Assessoria Contábil, diz que as indústrias podem reaver o crédito com a transferência desse crédito para uma filial, uma empresa do mesmo grupo ou uma empresa fornecedora. Mas o reconhecimento também é difícil. E a Argentina? Para esmagadoras brasileiras e multinacionais, trata-se de um paraíso. A estrutura tributária é simples, as distâncias entre as lavouras e os portos são pequenas e as fábricas, de grande porte, estão posicionadas próximas aos terminais de exportação. Vantagens que, em tempos de globalização, já levaram as companhias estrangeiras a redirecionar investimentos para o país. Com isso, a Argentina, que em 1995 tinha uma capacidade de esmagamento de 57.044 toneladas por dia, vai superar a marca de 130 mil toneladas diárias neste ano, segundo projeções das indústrias brasileiras. O Brasil, com algumas ampliações, pode chegar ao mesmo patamar argentino em 2006, mas partiu de uma base bem maior: em 1995, já tinha capacidade para 116.280 toneladas, segundo a Abiove. Nas exportações, a Argentina também já deixou o Brasil para trás em farelo e óleo, apesar de sua produção de soja em grão ser equivalente a dois terços da safra brasileira. "A tributação argentina, que mantém tarifas diferenciadas para os produtos e cobra imposto maior sobre o grão, de 3,5%, favorece a exportação de óleo e farelo e investimentos no país", diz César Borges de Sousa. O maior investimento em curso em uma nova esmagadora na Argentina é da Cargill. A empresa já conta com três unidades no país, e deve inaugurar este ano uma quarta, com capacidade para 12 mil toneladas por dia, que é a soma das capacidades de suas seis esmagadoras instaladas no Brasil. A Bunge, outra gigante nesse mercado no mundo e no Brasil, também vem desenvolvendo alguns de seus principais projetos de investimento na área de soja na Argentina. Em 2005, iniciou embarques na nova operação no porto de Ramallo, no norte de Buenos Aires, e iniciou o esmagamento na ampliada joint venture T6 Industrial, que tem capacidade para processar 19 mil toneladas diárias. China, Rússia e outros países do Leste Europeu, que contam com mercados consumidores promissores, também estão atraindo aportes em fábricas. Ao Brasil, que em 2020 poderá estar produzindo 105 milhões de toneladas de soja em grão por safra, conforme projeção da Abiove, caberá, se nada mudar, apenas o papel de fornecedor de matéria-prima. Para analistas, produtores e indústrias, é muito pouco.