Título: A emenda, o soneto e o caso Varig
Autor: Ronaldo Cramer
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"A Lei de Falências revelou-se uma ferramenta de difícil uso por ter uma e técnica legislativa não muito refinada"

Ninguém discordava de que a antiga Lei de Falências - o Decreto-lei nº 7.661, de 1945 - precisava ser modificada. A lei revogada, entre outros senões, não previa meios eficazes para a recuperação da empresa, pois era produto de uma época em que a preocupação do legislador se voltava apenas para os credores, de um tempo em que o direito falimentar era visto como o ramo da ciência jurídica que disciplinava tão-somente a liquidação da empresa. A concordata, prevista na lei revogada como a única forma de recuperação, constituía em uma espécie de moratória para pagamento dos credores sem garantia, o que tornava essa medida inútil para a maioria das empresas, pois o endividamento era - e é - principalmente com credores com garantia, trabalhistas e tributários. Além disso, a lei revogada ainda considerava como falida a empresa que convocasse todos os seus credores e lhes propusesse algum tipo de acordo, o que, na prática, inviabilizava qualquer tentativa extrajudicial de recuperação da empresa. Para o legislador de 1945, tentar recuperar a empresa era um ato de falência. Inspirada no famoso "Chapter Eleven" do direito americano, a nova Lei de Falências - a Lei nº 11.101, de 2005, que vem sendo também chamada de Lei de Recuperação de Empresas - trouxe, no lugar da concordata, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial. Apesar do fato de ainda não abrangerem os credores tributários e alguns credores com garantia real (os chamados credores proprietários) - e aqui o legislador de 2005 perdeu uma excelente oportunidade de realmente ousar -, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial parecem, na teoria, viabilizar o salvamento da empresa. Para confirmar as expectativas, a nova lei precisa ser testada na prática. E o processo de recuperação judicial da Varig, ajuizado poucos dias depois da entrada em vigor da Lei nº 11.101, vem sendo encarado como o grande paradigma de aplicação das novas regras. Não obstante o esforço e a competência de todos aqueles que trabalham nesse caso, a nova lei revelou-se uma ferramenta de difícil uso. A técnica legislativa não é muito refinada, o que dificulta a interpretação das normas jurídicas. E a lógica do processo de negociação, que caracteriza a recuperação judicial, é estranhada por nós advogados, mais acostumados, por força do nosso costume, ao processo litigioso. O sucesso da nova lei dependerá da compreensão de que a recuperação judicial não é um processo tradicional, em que alguém pretende, outrem resiste e o juiz decide. Tampouco é um processo exclusivamente de credores, como muitos pensam. A recuperação judicial instaura, na realidade, um verdadeiro processo de negociação entre a empresa e os credores, baseado na perspectiva do ganhar-ganhar ("win-win solution"), em que todos devem, necessariamente, achar um meio termo entre suas pretensões, para salvarem a empresa e, por conseqüência, possibilitarem o pagamento dos créditos. Acabou (e já era hora) a prática dos favores legais concedidos sem a oitiva e contra a concordância dos credores. Agora, não é preciso apenas convencer o juiz de que a empresa é viável, mas também os credores.

O sucesso da nova lei falimentar dependerá da compreensão de que a recuperação judicial não é um processo tradicional

A negociação, imposta pela recuperação judicial, deve ser considerada sob a ótica das três classes de credores que votam o plano de recuperação na assembléia: a classe dos credores trabalhistas, a classe dos credores com garantia e a classe dos credores sem garantia. A negociação do plano não deve ser igual nas três classes, justamente porque são diferentes os interesses de cada uma delas. Por exemplo, os credores trabalhistas não podem ser encarados como simples credores, pois se preocupam mais com a manutenção do emprego e a preservação dos salários do que apenas (friso o apenas) com o pagamento de seus créditos vencidos. É necessário compreender essa mecânica para se ter um plano aprovado. O sucesso da nova lei também dependerá da interpretação das novas regras. Como dito, a técnica legislativa não é boa. A nova lei tem falhas. Na recuperação judicial, chama a atenção a ausência de previsão para que os credores apresentem um plano alternativo ao plano da empresa. O artigo 56, parágrafo 3º da lei prevê, na sua literalidade, que os credores podem propor alterações ao plano da empresa, que, por sua vez, poderá aceitá-las ou não. Segundo a melhor interpretação, a palavra "alterações" contida nesse dispositivo significa não só uma mera modificação, mas uma modificação completa, isto é, um outro plano, completamente diverso do plano da empresa. E esse plano alternativo não precisa receber a aceitação da empresa para ser aprovado. Os credores, e apenas eles, devem decidir qual plano deve ser aprovado: o alternativo ou o da empresa. Se os credores podem, sozinhos, recusar o plano da empresa, não há sentido para impedir que, também sozinhos, possam aprovar o plano alternativo. Outra passagem da nova lei está gerando interessantes digressões. Tirante a hipótese do artigo 58, que prevê uma situação especial, poderá o juiz homologar o plano de recuperação não aprovado pelos credores? Há quem defenda que, se forem constatados a viabilidade da empresa e o exercício irregular do direito de voto dos credores que desaprovaram o plano de recuperação, o juiz poderá, sim, homologar o plano e conceder a recuperação judicial. Essa decisão seria dada com fundamento no artigo 47, que expressa os ideais da nova lei, e com base no princípio da preservação da empresa viável, que alguns entendem previsto implicitamente no artigo 170 da Constituição da República. Como se vê, o processo que corre na 8ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro não é importante apenas para a sobrevivência da Varig, mas também para a efetividade dos institutos trazidos pela nova Lei de Falências. Para o atento observador, receia-se que, no caso da nova lei, se não interpretada corretamente, a emenda tenha saído pior do que o soneto.