Título: Devaneios e miragens na reunião dos 'Três do Sul'
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/01/2006, Opinião, p. A10

Em vez de aproveitarem as raras reuniões para resolver problemas urgentes e consolidar a integração comercial, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Néstor Kirchner, da Argentina, e Hugo Chávez, da Venezuela, o mais novo membro do Mercosul, gastaram seu tempo na semana passada sonhando com projetos mirabolantes ou desenhando miragens. Entre elas, um dispensável Banco do Sul e um inútil Conselho de Defesa da América do Sul. Entre os presidentes do "Grupo Três do Sul", como o apelidou Chávez, Néstor Kirchner talvez tenha sido o mais objetivo. Em sua bagagem, mais uma vez, estavam propostas inaceitáveis para a Cláusula de Adaptação da Competitividade (CAC), para institucionalizar mais um mecanismo contra o livre comércio na região. O governo argentino fez a proposição que melhor lhe convém, como um país que não tivesse qualquer compromisso comercial com seus vizinhos. Ele defende a aplicação de salvaguardas automáticas de forma unilateral, em condições "abertas" demais - diante de aumentos importantes de importações, desníveis de crescimento econômico e desequilíbrio entre as taxas de câmbio. Enquanto comissões discutiam a questão em Brasília, a Argentina abria investigações contra importações de transformadores produzidos pelo Brasil. A indústria do setor vendeu para o mercado vizinho US$ 14,3 milhões em 2005. Já existem regras da Organização Mundial do Comércio que permitem proteção à indústria nacional, sem que seja necessário criar outras no bloco. Além disso, os produtos que integraram o contencioso entre os dois países não passam de 5% do comércio bilateral, segundo analistas, o que deveria ser um bom argumento contra a institucionalização da CAC. De qualquer forma, ainda que concessões temporárias sejam feitas, elas de forma alguma poderiam ter a forma desenhada por Buenos Aires. O governo brasileiro está, acertadamente, tentando modificá-las. Ele exige negociações prévias antes que as aplicações de salvaguardas sejam decididas, algo que já deveria ter se tornado praxe em um bloco comercial. Brasília insiste corretamente que as CACs tenham um prazo de duração - e menor que os quatro anos propostos pela Argentina. Por fim, o Brasil defende a existência de um programa de reestruturação dos setores protegidos pelas salvaguardas, como prevê a OMC. Ceder nestes pontos será perpetuar a estagnação do Mercosul. Kirchner, por outro lado, tem interesses comuns com Chávez. Quer atrair o fornecimento de gás da Venezuela, que tem as maiores reservas da região, e já atraiu US$ 1 bilhão dos petrodólares de Chávez para a compra de bônus argentinos. Chávez busca fugir do seu isolamento tornando-se uma força diretriz no Cone Sul e, entre os "Três do Sul", o Brasil é que precisa ter clareza de onde quer chegar com suas parcerias, que estão sendo perigosamente movidas por interesses políticos. É extravagante a idéia de um Conselho de Defesa da América do Sul. Quem tem flertado com iniciativas militares de defesa e importado armas e equipamentos é Hugo Chávez, cuja retórica é cada vez mais hostil aos Estados Unidos e dá sinais de delírios persecutórios à medida que aprofunda a sua "revolução bolivariana". Não há qualquer risco geopolítico que justifique a criação do órgão, a não ser criar um confronto diplomático de grandes proporções com a Organização dos Estados Americanos e o governo dos EUA. Um Banco do Sul para fomentar a integração não é uma idéia descabida, mas só Chávez hoje tem capitais abundantes para bancá-lo. Sua idéia de usar as reservas internacionais dos três países para formar seu capital, porém, é excêntrica. Há por trás do plano a velha retórica da independência financeira em relação aos organismos multilaterais de crédito, dominado pelos EUA. É um infantilismo - Brasil, Argentina já nada devem ao FMI e a Venezuela deve uma quantia irrisória. Nunca saíram do papel as promessas de ajuda financeira do Brasil a vários países da região. E falta capital para os investimentos internos na Argentina. Os planos para um gasoduto integrando os países faz sentido, mas ele deve se ater à realidade e não ser tocado com a rapidez das conveniências políticas de Chávez. Uma obra deste porte, de US$ 20 bilhões, que cruza a Amazônia é um desafio de engenharia e finanças gigantesco. Se o gasoduto for viável, e para boa parte de especialistas ele não é, salvo a um custo astronômico, ele exigirá um planejamento sério, e não voluntarismo ou fanfarronices.