Título: O governo 'Potemkin' do Iraque
Autor: Ian Bremmer
Fonte: Valor Econômico, 24/01/2006, Opinião, p. A11
Agora que os votos da eleição iraquiana realizada em dezembro já foram contados, as tentativas de formar um novo governo deverão entrar em ritmo acelerado. Anima sobremaneira o fato de que todos os lados aparentam aceitar os resultados. A questão chave relativa ao futuro do país, porém, continua sendo: será que os xiitas, sunitas e curdos se unirão em torno de uma autoridade central atuante? No curto prazo, existem bons motivos para acreditar que esta será a atitude da maioria dos detentores de poder nos três principais grupos do Iraque. Poderá um governo assim, porém, administrar o país como um todo? A resposta a essa questão provavelmente será não, o que explica porque o Iraque provavelmente começará a ser um país menos estável em um ano a partir de agora. O novo governo iraquiano, quando for formado, terá ao menos a aparência de viabilidade no futuro imediato. Os xiitas têm interesse em apoiar o governo central porque acreditam que seu peso demográfico (60% da população do Iraque) significa que a democracia representativa lhes garantirá o direito de governar e que também os protegerá das demandas e atentados dos sunitas. Os sunitas também apoiarão o governo, pelo menos inicialmente, pois ele representa a sua única oportunidade de conquistar o que consideram ser sua parcela de poder, recursos e receitas. Os curdos aceitarão o acerto porque acreditam que a nova constituição lhes garante o direito de controlar a maioria das riquezas de petróleo existentes sob o seu território, e porque eles não querem ser responsabilizados se Bagdá submergir no caos. Também há um outro motivo que explica porque xiitas, sunitas e curdos não querem se articular imediatamente para minar a autoridade federal: o governo central em Bagdá não disporá dos meios jurídicos ou econômicos necessários para desafiar os seus poderes locais. Em essência, apesar de todas as facções do Iraque terem um forte interesse em promover um governo central que aparenta ser plenamente funcional, os poderes desse governo serão na realidade limitados. No longo prazo, porém, esses limites impostos ao governo federal impelirão o Iraque a rumar na direção de uma competição renhida por poder e receita. O artigo 11 da nova constituição declara que "Tudo o que não estiver descrito nos poderes exclusivos das autoridades federais estará no âmbito da autoridade das regiões". Essa formulação quase opõe o governo central ao das regiões em uma luta pela supremacia política. Igualmente, pela lei atual, os soldados não obedecerão a Bagdá, mas aos caciques políticos regionais, ao passo que a constituição iraquiana assegura aos governos locais o direito de embolsar a receita proveniente dos novos campos de petróleo dentro das suas jurisdições. Na verdade, embora o governo central tenha a autoridade para cobrar as receitas geradas pelos campos petrolíferos existentes, não há nenhuma lei que impeça as autoridades locais de modernizarem locais antigos e alegarem que são novos.
Apesar de todas as facções do país terem forte interesse em promover um governo central funcional, os poderes dessa gestão serão limitados
O impacto desse estado de coisas dificilmente poderá ser superestimado. O petróleo responde por aproximadamente 98% da receita de exportação atual do Iraque. Ele representa a força vital da economia iraquiana e a fonte do dinheiro de que o banco central necessitará para construir instituições duradouras. Ainda que os ingressos de ajuda financeira internacional continuem sendo substanciais, o dinheiro para reconstrução vindo do exterior começará a escassear assim que o Iraque empossar o seu governo central. Resumindo, faltarão ao governo central a autoridade e os meios para governar o Iraque. Realmente, com o recrudescimento da violência entre xiitas e sunitas, o governo iraquiano poderá ser incapaz de manter até mesmo a aparência de eficácia por muito tempo. Além disso, os curdos são o cachorro proverbial que ainda não latiu. Eles gozam relativa prosperidade econômica, e suas instituições políticas estão se tornando cada vez mais eficazes e eficientes. Portanto, por enquanto, eles não têm nenhum motivo para contestar a ordem reinante. Esta estabilidade enfrentará novos desafios em 2006. As eleições governamentais de novembro obrigarão os políticos curdos rivais a propor programas antagônicos, e alguns candidatos procurarão obter vantagens eleitorais por meio de apelos populistas por independência. Ao mesmo tempo, pessoas mais serenas se empenharão em adiar um referendo potencialmente divisor em 2007 sobre a situação final de Kirkuk, a cidade rica em petróleo. Na verdade, os atritos gerados pelas práticas eleitorais provavelmente também alimentará ressentimentos dentro das comunidades xiitas e sunitas. Existe um grande perigo de que a nova política sectária do Iraque beneficie os que mais prometem aos seus eleitorados - às custas do governo central e das demais facções do país. As discussões em torno das possíveis emendas destinadas a apaziguar sunitas irados e a desmobilizar a insurgência provavelmente também estimularão sentimentos de hostilidade partidária. Mais preocupante ainda, quando os xiitas, sunitas e/ou curdos decidirem que os seus representantes eleitos não estão concedendo as gratificações e proteções prometidas, eles provavelmente enxergarão além da política para promoverem os seus interesses individuais. Alguns xiitas poderão voltar-se para os líderes de milícias, dos sunitas aos insurgentes, e os curdos, aos líderes que exigem independência. Neste ponto, o próprio futuro de um Iraque independente será questionado. Qualquer tipo de iniciativa separatista dos líderes curdos arrastará os turcos para dentro da cena política iraquiana. Ao mesmo tempo, a proteção oferecida pelas tropas dos EUA às autoridades iraquianas diminuirá à medida que as tropas forem sendo gradualmente retiradas, e o Irã se apressará em preencher o vácuo de segurança. Resumindo, o governo iraquiano poderá parecer eficaz por uma boa parcela de 2006, porém estará comprometido em tentar atender os interesses conflitantes de públicos profundamente divididos. A fragilidade do governo central, a violência continuada da insurgência, a crescente influência iraniana em Bagdá com caciques políticos xiitas no sul, e o avanço natural de políticas sectárias indicam que o novo Iraque se tornará acentuadamente menos estável à medida que o ano for se aproximando do fim.