Título: O tango vai sambar
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 28/12/2005, Opinião, p. A9

Brasil e Argentina estão em pólos opostos do espectro de políticas econômicas. O Brasil faz o dever de casa: o governo honrou a dívida pública, respeita contratos, cumpre as metas fiscal e de inflação e deixa o câmbio flutuar. À exceção do superávit primário, na Argentina o governo fez ou faz tudo ao contrário: deu calote na dívida pública, nega-se a reajustar tarifas, tem juros reais negativos, administra a taxa de câmbio e permite que a inflação se acelere. Dificilmente os dois modelos estão certos, um dos dois vai falhar. Entre nós, a área econômica do governo propôs um plano fiscal de longo prazo e o Banco Central (BC) mira o centro da meta de inflação. Mesmo havendo um debate sobre a política monetária, o fato é que o modelo escolhido pelo Brasil é de respeito às metas de inflação e redução da relação dívida/PIB. E nem mesmo uma equipe menos "convicta" deixaria de, grosso modo, seguir esse script. Na Argentina é diferente. O governo renega o modelo "noventista" (da década de 90) de câmbio apreciado e juros elevados, não reajusta tarifas, taxa as exportações para aumentar a oferta no mercado doméstico, faz acordos de preços com supermercados, antagoniza o FMI e se financia com a Venezuela. A política antiinflacionária do governo é aumentar o crédito para fomentar a oferta, e a nova ministra da Fazenda diz que não combaterá a inflação inibindo o crescimento econômico, antes o contrário. A escolha da política econômica em economias com histórico de instabilidade é muito difícil. O caminho mais seguro para reduzir a volatilidade é um ajuste fiscal que reduza a relação dívida/PIB e permita a emissão de dívida pública em moeda local. No momento em que isso passa a acontecer, a dívida pública se torna independente das taxas de juros e câmbio. Mas seja no Brasil, seja na Argentina, é difícil fazer um ajuste fiscal maior porque os políticos não estão convencidos de sua necessidade e, na verdade, têm interesses conflitantes com esse propósito. No Brasil, dados os limites na área fiscal, a opção do Banco Central é manter a taxa de juros em um patamar que impeça a taxa de inflação de acelerar. E fugir da tentação de administrar a taxa de câmbio, transferindo para os agentes privados o risco de se endividar em dólares. Sua estratégia é estabilizar as expectativas de inflação, juros e câmbio de modo a, aos poucos, permitir ao Tesouro aumentar a emissão de dívida pré-fixada, inclusive em reais no mercado internacional. Com isso, a política monetária seria mais eficiente - ter-se-ia os mesmos resultados com juros menores - e se consolidaria a queda dos riscos cambial e de insolvência do Tesouro e, assim, da taxa de juros sobre a dívida pública. A Argentina optou por um modelo de aceleração do crescimento, mantendo os juros baixos - o que estimula a demanda doméstica - e evitando a apreciação do peso - o que incentiva as exportações. Em resposta, a demanda está crescendo, há um boom imobiliário e a inflação vem acelerando. A visão do governo, compartilhada por vários analistas, é que o crescimento promoverá o investimento e a expansão da capacidade produtiva de modo que, a partir de certo ponto, a inflação cairá. Além disso, até agora, a inflação se mostra funcional porque alimenta a arrecadação de impostos e facilita o ajuste fiscal. Que erros os governos brasileiro e argentino estariam cometendo? Ambos estão vacilando no aprofundamento do ajuste fiscal em um momento de expressivo aumento das receitas. No Brasil, há quem critique o BC por manter a taxa de juros muito elevada diante da trajetória de inflação, da atividade econômica e do fluxo cambial. A Argentina cometeria o erro oposto ao manter a taxa de juros muito baixa.

Se não fizer ajuste a Argentina terá de volta a hiperinflação dos anos 80, e isso servirá de reflexão aos que defendem, aqui, crescer a qualquer preço

A Argentina vem crescendo muito nos últimos anos mas, ao contrário do que se imagina, no cômputo do período pós-crise, o Brasil tem vários corpos de vantagem. Desde 1998, acumula crescimento do PIB de 17%, sem queda relevante no intervalo, enquanto na Argentina só agora o PIB voltou ao nível de sete anos atrás e, ao longo do caminho, chegou a perder 18% do PIB. Daqui para frente, a corrida entre os dois depende da consistência das políticas em curso. O BC brasileiro age com prudência e reduzirá os juros desde que a inflação esteja na trajetória da meta. E dada a longa história de volatilidade da inflação e do PIB, ao estabilizar a expectativa de inflação - o que pode demorar -, estará contribuindo para reduzir a taxa de juros e acelerar o crescimento da economia nos próximos anos. Não se pode dizer que a atitude do governo argentino seja prudente. De fato, é uma aposta ousada de que a aceleração da inflação é temporária e que o crescimento se encarregará de produzir a estabilidade. Não funcionará: a inflação anual, que está na casa dos 12%, pode chegar a 20% em mais alguns meses. O Brasil está no caminho certo e a Argentina ruma para outra crise. Por aqui, se ficar claro que a inflação está sob controle e a atividade fraca, reduzir a taxa de juros é uma tarefa fácil. A situação argentina é preocupante pois o caminho de volta é muito difícil. Chegará o momento em que o governo se verá obrigado a produzir uma retração da economia, comprometendo o ajuste fiscal que se nutre do crescimento do PIB e da inflação. E se não fizer o ajuste, a Argentina terá uma repetição da hiperinflação dos anos 80. Essa lastimável experiência talvez sirva para a reflexão dos que preferiam um pouco mais de crescimento mesmo que com um pouco mais de inflação no Brasil.