Título: Reflexões sobre nossas instituições severinas-3
Autor: Claudio Couto
Fonte: Valor Econômico, 02/01/2006, Política, p. A4

Nas duas colunas anteriores, tratei dos Poderes Legislativo e Judiciário, apontando aspectos "severinos" de suas estruturas institucionais. Nesta, trato do poder Executivo, apontando o que de mais "severino" tem esse poder em nosso país: a sua apropriação privada. O problema foi representado de forma emblemática por ao menos dois episódios envolvendo ao ex-presidente da Câmara dos Deputados. Um deles, a nomeação de seu filho para um posto de segundo ou terceiro escalão do Executivo - uma exigência do então recém-eleito presidente da Câmara ao presidente da República, como forma de não criar dificuldades ao governo em seu novo posto. Acreditando no dito popular segundo o qual, onde passa um boi, passa uma boiada, o ex-deputado passou a fazer exigências maiores: desde ministérios para seus amigos, até "aquele órgão que fura poço", na Petrobrás. A singela justificativa para a nomeação do próprio filho foi a de que o referido cidadão possuía curso superior e, portanto, era competente, de modo que os insatisfeitos seriam apenas invejosos de tão proverbial e severina capacidade. A exigência de ministérios deu-se no bojo da negociação de mais uma das intermináveis e vacilantes reformas ministeriais do governo Lula, tendo inclusive o efeito de interrompê-la. Esta exigência é, contudo, a menos bizarra de todas, embora o ex-deputado tenha extrapolado na sua pretensão, errando na forma e superestimando seu poder. Isto porque negociar ministérios é natural em governos de coalizão, como os que são característicos de nosso presidencialismo. Realmente problemáticas são as exigências de nomeações para postos de segundo ou terceiro escalões para parentes, ou de postos eminentemente técnicos em empresas estatais, para apaniguados ou correligionários. Afinal de contas, se o posto ministerial é político por excelência e, portanto, afeito à partidarização, o mesmo não se pode dizer de cargos técnicos, anda mais os de empresas públicas. A partidarização desses cargos implica na perda de capacidade e memória administrativas dos órgãos governamentais, além de resultar num alto risco (para dizer o mínimo) de tráfico de influência. Podemos nos perguntar por que razão um parlamentar que muito pouco deve entender de petróleo tem tanto interesse no "órgão que fura poço". Como não se trata de espírito público, só pode tratar-se de interesse material.

Setor público profissional é imperativo

Duas figuras centrais no atual escândalo que varre o país encontram-se numa situação muito similar tanto à do filho de Severino como àquela em que estaria seu eventual nomeado para o órgão furador de poços. Tratam-se dos senhores Henrique Pizzolato e Maurício Marinho. O primeiro, pilotava, por imposição do PT, a área de marketing do Banco do Brasil - que revelou-se ocupar lugar central no esquema do "valerioduto". O segundo foi o "barnabé" flagrado recebendo R$ 3.000 de propina, ocupante de sua cadeira por determinação do aliado PTB. Antes mesmo do atual escândalo, Pizzolato já havia protagonizado o affair da compra de ingressos do show de Zezé de Camargo e Luciano com vistas a financiar a nova sede do PT. Pode-se perguntar que sentido faz - do ponto de vista de um Estado democrático e republicano - que chefie o órgão responsável pela publicidade do banco um cidadão cuja principal credencial profissional foi ter trabalhado com Delúbio Soares no comitê de finanças da candidatura Lula. Não seria o caso de ocupá-lo um profissional do ramo, com carreira feita no setor e, mais ainda, no próprio Banco do Brasil? O mesmo vale para o caso dos Correios e em nada atenua-se a gravidade do problema pelo fato de ambos serem funcionários de suas instituições, já que, num caso e no outro, sua ascensão funcional deu-se não por méritos profissionais, mas por afinidades partidárias. Não é à toa que os resultados financeiros das empresas estatais são historicamente pobres, assim como não é menos ineficiente a administração direta, onde a mesma ocupação não-profissional dos postos ocorre. Nossos economistas tratam com tanta freqüência do tema do gasto público, apontando a necessidade de realizar cortes, com vistas a atingir as metas fiscais, mas pouco mencionam a importância da qualidade desse gasto, lidando com o assunto como simplesmente se tratasse de cortar despesas desnecessárias, sem problematizar a maneira como os recursos são geridos. A profissionalização da máquina pública, com a redução drástica dos cargos de livre provimento, tanto na administração direta como indireta, é um dos temas centrais para a agenda do próximo presidente da República - seja ele quem for. A razão para isso não é somente moral, é administrativa e, conseqüentemente, fiscal. Uma administração publica mais profissionalizada gasta menos, está menos sujeita à corrupção (em particular a que desvia recursos para campanhas eleitorais) e atinge mais eficazmente suas metas. Mas o problema moral não é de pouca importância. Em primeiro lugar, porque a corrupção não é uma chaga meramente administrativa: ela contraria os valores de um regime democrático e republicano. Em segundo lugar, porque dificilmente o candidato a presidente que quiser tornar a profissionalização do setor público um item de campanha atingirá o coração do eleitor com arrazoados administrativos. O eleitor quer um governo decente.