Título: Falso dilema
Autor: Claudio Haddad
Fonte: Valor Econômico, 02/01/2006, Opinião, p. A7

No recente debate provocado pela queda do PIB face às expectativas originais, tem se argumentado que a equipe econômica e o Banco Central deveriam doravante priorizar o crescimento e não a inflação. Trata-se de um falso dilema. Não existe crescimento sustentável sem estabilidade e, para que ele aconteça, é fundamental aprofundarmos o ajuste fiscal, para que a estabilidade possa ser mantida a custos mais baixos para a sociedade. Embora o Brasil, apesar das crises periódicas, tivesse mantido, em média, taxas altas de crescimento no pós-guerra até 1980, o modelo adotado naquela época se esgotou, econômica e politicamente. O governo se desmoralizou como agente produtor ou planejador e, em um mundo crescentemente aberto e competitivo, fica muito mais difícil esconder a ineficiência atrás de pesadas barreiras tarifárias. Além disto, em uma democracia de massas como a nossa, a inflação que corrói salários e contribui para esconder aquela ineficiência é punida através do voto. Não é à toa que, apesar da forte alternância de poder na última eleição, a política econômica privilegiando a estabilidade foi mantida intacta. Países que mantiveram crescimento continuado por muitas décadas, como os hoje desenvolvidos do mundo ocidental, os asiáticos como Japão, Coréia e agora provavelmente a China, não conviveram, em nenhum período relevante de tempo, com inflações elevadas ou crônicas. Desde que iniciou as reformas, em 1978, a China passou por dois surtos inflacionários, ao final dos anos 80 e entre 1993 e 96. Ambos foram combatidos rapidamente, embora às custas de queda significativa da taxa de crescimento do PIB, de 11% para 4% ao ano em 1989-90 e de 14% para 7% de 1992 a 99. Desde 1997 a inflação na China tem sido desprezível, estando hoje em torno de 2% ao ano. O que a evidência histórica mostra é que estabilidade de preços é uma condição necessária, porém não suficiente, para o crescimento sustentável e que perdas temporárias de PIB derivadas de políticas de estabilização podem ser mais do que compensadas pela expansão futura continuada delas resultante. Discutir falsos dilemas entre inflação e crescimento, ou culpar o Banco Central pela queda de PIB não é produtivo. O que se deve azer é colaborar para que o trabalho da autoridade monetária seja feito da forma mais eficiente e ao menor custo possível para a sociedade. Isto somente será conseguido com um profundo corte de gastos públicos que gere superávits primários por um longo período de tempo, de forma a reduzir substancialmente a dívida líquida do setor público em relação ao PIB. Impossível? Claro que não. Instrumentos existem, seja via choque de gestão, racionalização de programas, reformas, desvinculações ou uma combinação destes. O fundamental é haver uma conscientização da sociedade de que sem este ajuste estamos fadados a caminhar a passo de cágado, com a possibilidade de no meio do caminho termos erros graves de diagnóstico, como o falso dilema acima, que nos levaria a nova crise, pondo a perder anos de trabalho em favor da estabilidade.

Perdas temporárias de PIB derivadas de políticas de estabilização podem ser mais do que compensadas pela expansão futura continuada

Embora orçamentos públicos não sejam fáceis de mexer, esforços fiscais significativos e bem sucedidos são mais comuns do que se pensa. Para reduzir sua dívida interna que, em função das Guerras Napoleônicas atingiu 250% do PIB em 1820, a Inglaterra manteve superávits primários em média iguais a 4,6% do PIB entre 1816 e 1899 que, por muitos anos representaram cerca de metade de toda receita fiscal do governo ( Naill Ferguson, "Wars, Revolutions and the International Bond Market from the Napoleonic Wars to the First World War", Yale International Centre for Finance, outubro, 1999). Tal esforço fiscal, longe de retardar o crescimento inglês, assegurou a hegemonia de Londres como centro financeiro da época e a afirmação do Império Britânico como a maior potência econômica e militar daquele século. Mais recentemente, a Irlanda, considerada um caso perdido na Europa até os anos 80, com uma economia caracterizada por baixo crescimento, alto desemprego, elevados déficits fiscais e dívida pública, juntamente com altas taxas de juros, executou a partir de 1987 um forte e continuado esforço fiscal. Conforme mostra a tabela ao lado, ao longo de 14 anos a Irlanda transformou um déficit nominal médio de 12% do PIB em um superávit, que chegou a atingir 4,5% do PIB em 2000. Como resultante, a dívida pública caiu de 112% do PIB em 1987 para 33% em 2003, a taxa de desemprego de 17% para 4% e o crescimento acelerou, transformando a Irlanda de caso perdido em "tigre celta" e fazendo com que ela tenha hoje uma das maiores rendas per capita da Europa. Já de alguns anos para cá a Irlanda é classificada como AAA, captando a apenas 30 pontos acima dos Estados Unidos. Embora o desempenho econômico irlandês não tenha sido devido apenas ao ajuste fiscal, o que mais uma vez mostra a tabela é que a idéia de que mais gastos públicos e déficit geram maior crescimento não se sustenta, a evidência claramente apontando na direção oposta. Tanto no caso da Inglaterra quanto da Irlanda, o ajuste fiscal foi mantido como uma política de Estado e não de governo, tendo ficado imune à alternância de poder político no período. No caso brasileiro, para que o ajustamento fiscal possa ter sucesso, é absolutamente necessário que haja entendimento semelhante. Que a política não é de fulano ou beltrano, do partido A ou do B, mas sim da sociedade. A consciência de que precisamos sair do marasmo em que nos encontramos e a vontade de mudar já existe. Só falta canalizá-la na direção correta.