Título: "Os políticos precisam temer o eleitor"
Autor: Heloisa Magalhães
Fonte: Valor Econômico, 02/01/2006, Especial, p. A8

Entrevista Para cientista político, país só avançará quando houver um aumento da intolerância popular

A campanha de 2006 será, sim, muito dura, mas pode trazer benefícios para o país se dela resultar um maior temor dos políticos em relação ao eleitorado, com um julgamento duro das urnas e altas renovação e abstenção. A opinião é do professor do Instituto Universitário do Rio de Janeiro (Iuperj), Renato Lessa, que cita o político republicano inglês Oliver Cromwell para resumir o sentimento do eleitorado da crise: "Mesmo que os senhores tivessem feito algo de bom, estão aqui tempo demais e eu lhes digo, vão embora, queremos nos ver livres dos senhores pelo amor de Deus, vão embora". Lessa identifica na relação autárquica entre o governo e o Congresso, que deixa de lado a sociedade, a origem da crise: " Ao presidente importa obter maioria no Congresso para governar e ao Congresso importa obter do presidente acesso às benseses públicas governamentais. Casamento monogâmico perfeito". Em entrevista ao Valor, Lessa diz, também, que o PSDB ter dificuldades para se posicionar diante de um governo com fundamentos macroeconômicos iguais aos estabelecidos no mandato tucano e que o PT terá que enfrentar bases de um partido que está se esquerdizando. E mais, para ele, nem o PT nem o PSDB têm plano B a apresentar. E é por isso que 2006 será decisivo: " Vai ser um ano de combate. A natureza das relações políticas no Brasil está completamente esgarçada", diz. A seguir, os principais trechos da entrevista..

Valor: O projeto de reeleição do governo parece estar em uma encruzilhada. Enquanto o PT defende mudanças na economia, o presidente declara que não vai mudar nada. É exeqüível uma campanha em que a prática do governo seja tão diversa do discurso do partido? Renato Lessa: Essa política macroeconômica é o esteio do governo. Permite algum tipo de racionalidade na gestão governamental. Não pela excelência intrínseca dela, estou longe de ser um fundamentalista de mercado, mas simplesmente pelo fato de que no governo não existe alternativa séria, consistente, a essa política.

Valor: Mas o partido não bate insistemente na tecla da revisão dessa política? Lessa Não há inteligência dentro do governo capaz de produzir o plano B. Sempre se teve a miragem de que havia um plano B, desde o governo Fernando Henrique. Havia até um certo folclore sobre isso. Quando começou o governo Lula se falava de plano B do pessoal ligado ao José Dirceu. Mas não há plano B. O governo está atolado nesta alternativa. Há outros aspectos interessantes. Um deles é como o PSDB vai se posicionar numa campanha presidencial diante de um governo que defende uma política cujos fundamentos macroeconômicos são iguais aos estabelecidos no país há mais de dez anos. O sucesso da política tucana, na verdade, foi atestado pela oposição que assumiu o governo e até gaba-se de tê-la conduzido de maneira mais competente. Temos aí uma coisa curiosa e inaudita. Pela primeira vez uma oposição vai se defrontar com um governo sem que tenha substantivamente algo que a diferencie dele.

Valor: A oposição não buscará se diferenciar com o discurso da ética? Lessa: Aí é outro aspecto do meu argumento. A diferença vai ter que ser produzida em outro domínio. E será exatamente na ética, na honra, em aspectos despolitizados. Ou seja, vai ser uma campanha eleitoral cujo eixo fundamental não é político propriamente dito e sim ético.

Valor: Mas o PT usava isso... Lessa: Sim, de certa forma está colhendo a armadilha que plantou. O PT foi minando o campo dos adversários sempre suspeitando que, além de estarem errados do ponto de vista substantivo eram ladrões, sempre uma coisa policial criminológica, penal, e agora isso está voltando porque são todos parecidos. Abre-se uma campanha que pode resvalar para a histeria ética sem que questões de conteúdo sejam tratadas. Ficam de lado a discussão da dívida pública, do superávit primário, da política de juros, agrária e industrial.

Valor: E o PT, está indo mais para a esquerda?

O problema dos tucanos é que eles têm que se distinguir não apenas de Lula como de seu próprio passado"

Lessa Sim, na última reunião do diretório o partido resolveu esquerdizar. Criou um cenário absolutamente bizarro. É como se não houvesse crise, como se o ocorrido nos últimos meses não tivesse que ser incorporado numa narrativa para poder dar sentido aos passos seguintes. Coloca-se uma pedra no passado imediato, de ontem, anteontem, todo esse processo que vem de maio. Acabou, mudou a direção do PT, ou seja não se discute esse passado, zeramos. Então, vêm as teses de esquerda, afastamento com relação ao governo. Um movimento absolutamente inconsistente e irresponsável em relação à história imediata. E irresponsável diante do fato de que esse governo, embora não sendo só PT, é um governo do PT. É curioso o fato de que volta a política das tendências. Uma coisa meio estudantil. Coisas do tipo "Unidade na Luta", "PT de Massas", "Democracia Radical". São lemas do movimento estudantil que se encontra na disputa para eleição para diretórios estudantis. Isso volta ao 'prosceniu' (do grego, à cena) como se fossem alternativas sérias para o país.

Valor: As últimas pesquisas mostraram o prefeito paulistano, José Serra com favorito. Essa candidatura tem sustentação? Lessa: Essas pesquisas são mais do que uma fotografia do momento, mas estão longe de ser o desenho final. Essa bolha do Serra não pode ser interpretada como patrimônio político consolidado. Pode ser uma bolha temporária, do eleitor que votou no Lula, está solto e retrocede na direção do Serra. O que tem de inequívoco nesta pesquisa é a erosão do patrimônio eleitoral do presidente. Mas os tucanos têm um problema. Eles têm que não só se distinguir de Lula, como alternativa melhor para o país, como também têm que se distinguir do seu passado. Independentemente do governo tucano ter sido bom ou mau, eles têm que se desfazer de uma sensação de que foram preteridos há três anos atrás em função de uma alternativa esperançosa. E o fracasso dessa alternativa não transforma automaticamente os anos anteriores em virtuosos. É um engano.

Valor: O sr. identifica um outro candidato do PT a não ser Lula? Lessa: Competitivo, para ganhar, não.

Valor: O sr. avalia que nas eleições presidenciais haverá a polarização PT e PSDB ou terá um candidato correndo por fora? Lessa: Esse é um cenário que pode se abrir, o surgimento de uma percepção de enfado ou rejeição ao condomínio das torres gêmeas. Teoricamente existe um terceiro caminho. A imagem do Garotinho aparece mas ele é inconfiável do ponto de vista do seu próprio partido. E Garotinho não está crescendo tanto assim. Está estacionado. É a pior alternativa pois é a mais imponderável e a que maior imprevisibilidade pode trazer. E ele pode vir a ter problemas de percurso. A CPI está levantando coisas desagradáveis referentes ao governo do Estado (com o fundo de pensão da estatal Cedae). Ele também vai ter um problema difícil no Tribunal Superior Eleitoral que é Campos (município onde é acusado usar a máquina do governo do Estado para conseguir votos para o seu candidato à prefeitura). Além disso, tem o governo do Rio (ocupado pela mulher, Rosinha Matheus). O desempenho pífio e desafiado pela questão da segurança. Um governo paralisado, inoperante, que não o qualifica para pretensões maiores. Mesmo com a capacidade de prestidigitação, de tirar colho da cartola, Garotinho vai ter que ser confrontado no debate com outros atores.

Valor: E o PFL? Cesar Maia, que era candidato à presidência já declarou apoio ao Serra... Lessa: O PFL joga para um papel coadjuvante, o mesmo que teve no governo FHC. Não o vejo com um apelo eleitoral nacional.

Valor: Há outra via? Lessa: Tem um ponto que venho desenvolvendo, que é o que aconteceu com a natureza do presidencialismo. Os cientistas políticos, em geral, gostam muito de usar a expressão ´presidencialismo de coalização´, cunhada pelo Sérgio Abranches para designar o modo pelo qual as coalizões são feitas no Brasil desde a República de 1946. O país, desde a década de 80, com a redemocratização, começou a criar uma dinâmica política na qual o presidente e o Congresso são os atores fundamentais. Na verdade, se cria um mundo autárquico, sem relações com o resto da sociedade e que ao presidente importa obter maioria congressual para governar e ao Congresso importa obter do presidente acesso às benesses públicas governamentais. Casamento monogâmico perfeito. Em vários artigos usei a expressão autista para designar esse processo mas fui advertido pela associação dos pais de crianças autistas, com toda razão. E fui convencido disse quando me disseram que os autistas são dóceis, carinhosos, gentis, bons. Aí é que a metáfora não se aplica mesmo. Inventei, então, outra categoria, a do 'autarquismo'. A idéia que a política que importa é essa, a relação entre Executivo e Legislativo, o que está fora disso é irrelevante.

Valor: É exatamente essa relação que está e estará sendo questionada?

Criou-se um modelo autárquico em que ao governo importa a maioria e ao Congresso, às benesses "

Lessa: É nela que a crise se instalou. O mensalão é apenas um capítulo de uma relação perversa, patológica, do Congresso com o Executivo. Não é a questão de desculpar esse governo porque outros fizeram. A questão não é essa. A questão é que há uma relação predatória que esse governo radicalizou através da compra de partidos para fazer a maioria parlamentar. Tudo bem, isso é sabido. Eu tenho dito isso e outras pessoas também. Mas qual é o papel do presidente nisso? O papel do presidente é falar para a patuléia, de animação do público. Nesse sentido que tenho desenvolvido a idéia do 'presidencialismo de animação'. Mas do que um presidencialismo de coalizão trata-se de animação em que o papel do presidente é de relações públicas do governo.

Valor: E o papel se restringe a Lula? Lessa: Foi Collor que o inaugurou. E de maneira explosiva. Fernando Henrique era de maneira mais estudada, que tem a ver com elitismo do personagem. Tinha os marqueteiros segurando mas de vez em quando ele partia para uns exageros de retórica. Com Lula, a marquetagem também é pesada, explorando o lado espontâneo, com muitos arroubos e descontroles de retórica. Isso ao invés de aproximar a população do presidente, cria uma cortina.

Valor: A população cansou desse perfil de Lula? Lessa: Com a popularidade diminuindo, começa um cenário em que o presidente começa a representar ele próprio. A crise política está mostrando isso. O que as pessoas fazem no Parlamento? Representam-se a si próprias. O que é a carreira parlamentar? É uma oportunidade para negócios, uma microempresa, um Simples. Cada deputado é um micro-empresário, que vai para o parlamento abre sua bancada e anuncia: "Venham os senhores, podemos negociar, vamos fazer negócios". Até para pagar a eleição e a própria reeleição. Mas não é esse o ponto. O ponto é como o presidente que é o portador de dezenas de milhões de votos, ao invés de ser um operador político do governo, estratégico do governo, na verdade canaliza essa energia eleitoral que recebe com uma relação com a patuléia, com a massa que é de animação, de diversão.

Valor: Mas essa estratégia não tem sido suficiente para desassociar o presidente das denúncias... Lessa: Ele não está imunizado mas mesmo assim continua com 30% (de intenção de voto). Independentemente do personagem, ao presidente acabou sendo configurado esse papel, o de relações pública do governo. Usar cocar de índio e boné de cooperativa de taxi. Como isso sempre é pautado por marqueteiros, essa comunicação com o público é sempre feita na linguagem mais simples possível, vocabulário de poucas palavras, metáforas futebolísitcas, para levantar o astral das pessoas. A suposição é que a população brasileira tem um nível cognitivo baixíssimo, é incapaz de processar discursos políticos de maior complexidade, a qualidade cognitiva da comunicação do presidente com a população é baixíssima. Está baseada na percepção de que a população não entende argumentação política mais sofisticada. Imagina um eleitor ideal, quem tem que atingir, cria um boneco ideal e identifica como se comunica com essa gente. Acho que o dilema está posto: o governo perdeu a capacidade operacional no concreto, e depende dessa prática de animação, cuja eficiência está contaminada pela inoperância governamental. E o que dá lastro ao governo, o apego fundamentalista a princípios macroeconômicos, não é exatamente um tema de grande apelo popular.

Valor: O PT precisa arranjar um outro discurso? Lessa: A confusão que o PT, o governo, se meteu é tão grande que não consigo imaginar um drible, uma jogada de marketing capaz de produzir um resultado virtuoso para esse processo. Ainda mais porque os marqueteiros saíram desacreditados dessa crise. Acho que 2006 vai ser um ano muito difícil para o governo. Mesmo que se tenha uma melhoria econômica. Vai ser um ano de combate. E há um ponto importante. A natureza das relações políticas no Brasil está completamente esgarçada. O nível de polarização, de agressividade entre governo e oposição está absurdo. E esse governo que vai disputar a reeleição ou a eleição com candidatos próprios sob investigação. É um governo com CPI aberta, um candidato sob investigação que a todo momento pode 'cpizar' menos ou mais.

Valor: A campanha presidencial vai ser sanguinária? Lessa: Sim, será uma campanha muito dura, muito complicada. Um ator importante de 2006 vai ser o eleitorado. Lembro o que (Oliver) Cromwell (1599-1658) disse no século 17 após a revolução em que implantou, provisoriamente, a República na Inglaterra: "Mesmo que os senhores tivessem feito algo de bom, estão aqui tempo demais e eu lhes digo, vão embora, queremos nos ver livres dos senhores pelo amor de Deus, vão embora". É possível que a população fale isso agora. Vai haver renovação grande no Congresso e taxa grande de abstenção. Nós avançaremos se aparecer mais intolerância popular com relação aos políticos. Eles têm que temer a população e temem muito pouco. O grau de temor é fundamental. Não estou advogando nada violento como bengaladas em geral mas ser julgado na urna.

Valor: Há opção de um novo modelo? Lessa: Discute-se a reeleição e o mandato de cinco anos. Passar para cinco anos seria um desastre, pois reintroduz na política brasileira o princípio da eleição solteira, que foi a conjuntura que possibilitou que Collor fosse eleito num momento que não se discutia a representação política, mas apenas o presidente. Porque, então, não se pensa num mandato presidencial de seis anos sem reeleição com mandatos parlamentares de três anos? Se teria em cada mandato presidencial uma reeleição intermediária que dependendo do resultado da eleição teria que reconfigurar o governo. Mas isso não tem a menor viabilidade porque jamais se convenceria os parlamentares a diminuírem o mandato. É mais fácil eles diminuírem o do presidente do que o deles. Acho que a resposta para essas questões todas vêm de baixo para cima. A sociedade está mais organizada e atenta ao que os políticos estão fazendo. Parte vem disso, parte vem da justiça eleitoral dar procedimentos de controles de gasto de campanha. Ao invés de agir depois que a campanha está feita, agir ao longo do próprio processo eleitoral. E fazer coisas simples, por exemplo, não dar diploma a quem não tiver conta de campanha aprovada. Há instrumentos que, somados a uma maior fiscalização e a mais atenção cívica, podem minimizar esse quadro com o tempo, mas nada no curto prazo.