Título: Estratégias e desafios do comércio exterior (II)
Autor: Ricardo Sennes e Alexandre Barbosa
Fonte: Valor Econômico, 19/11/2004, Opinião, p. A-10

Os conflitos comerciais entre Brasil e Argentina não são novidade. No período recente, entretanto, especialmente do lado brasileiro, tem predominado uma visão excessivamente crítica sobre essa relação. Uma análise mais detida sobre o padrão de comércio entre os dois países pode servir para acalmar os ânimos e avançar rumo a uma agenda propositiva para o Mercosul. Entre 1991 e 1998, a corrente de comércio entre Brasil e Argentina cresceu de forma marcante. A redução tarifária, o impacto comercial do Plano Real, além dos níveis de crescimento econômico de ambos os países - especialmente o deles até 1998 - contribuíram para este bom desempenho. Ao final do período, o intercâmbio entre os dois países chegou a quase US$ 15 bilhões, ou seja, mais de 13% do total comércio brasileiro e ¼ do argentino. Simultaneamente, a participação da corrente de comércio Brasil/Argentina no PIB agregado dos dois países (em dólares ppp) multiplicou-se por três. Em termos de saldo comercial, o Brasil apresentou superávit acumulado de US$ 1,8 bilhão entre 1990 e 1994, e déficit de US$ 5,6 bilhões entre 1995 e 1998. O que aconteceu de 1999 para cá? Em primeiro lugar, os dois países sofreram ataques especulativos que trouxeram consigo desvalorizações expressivas de suas moedas. Além disso, o crescimento médio do PIB anual em termos reais, neste qüinqüênio, foi de 1,6% ao ano no Brasil, contra um encolhimento anual da economia argentina de 2,3%. A queda da corrente de comércio bilateral, de 37% entre 1999 e 2003, coincidiu com uma queda do PIB per capita Brasil/Argentina de 2,5% para o conjunto do período. Como conseqüência da longa recessão argentina, o Brasil apresentou um déficit acumulado de US$ 4,8 bilhões no período. Simultaneamente, percebe-se contínua piora do perfil das trocas bilaterais. Em 1998, o Brasil apresenta superávit comercial de cerca de US$ 1 bilhão no conjunto dos setores onde possui vantagens competitivas (química, papel e celulose, siderurgia, máquinas, eletroeletrônico, automóveis e tratores, calçados e vestuário), apesar do déficit comercial total com os argentinos de US$ 1,3 bilhão; no ano de 2003, este superávit industrial cresceu cerca de 50%, quase anulando o superávit global argentino, o qual depende cada vez mais das exportações de cereais e combustíveis. Nesse contexto, as várias iniciativas de construção de cadeias produtivas regionais, a partir de acordos setoriais ou via estratégias das empresas multinacionais, foram abortadas. O setor automotivo é paradigmático: de um superávit comercial expressivo em 1998, os argentinos passam a uma situação francamente deficitária em 2003.

O que aconteceu nesse meio tempo? Além da desvalorização cambial brasileira, e da recessão argentina, deve-se apontar para uma radical mudança nos fluxos dos investimentos externos para o Brasil, inclusive com transferência de empresas para o Brasil no segmento de autopeças. Em outras palavras, a soma dos impactos destrutivos da conversibilidade sobre o tecido produtivo argentino, com as deficiências competitivas dos nossos setores dinâmicos em relação a outros mercados, transformou o mercado dos "hermanos", quando da sua recuperação em 2003, em mercado cativo para setores da indústria nacional e multinacional com sede no nosso país. Mesmo assim, em 2003, estamos longe de ter retomado o valor de exportações para a Argentina de 1998, mesmo nos setores industriais onde somos mais competitivos. Por que então a postura defensiva do parceiro do Mercosul, impondo cotas a refrigeradores, máquinas de lavar, calçados, além da defesa da prorrogação do comércio administrado no âmbito do setor automotivo?

A análise dos padrões de comércio entre os países pode avançar rumo a uma agenda propositiva para o Mercosul

Se, de um lado, é verdade que a imposição de cotas não é mecanismo adequado para a construção de uma área de livre comércio, deve-se ressaltar que, com um volume menor de exportações, a ocupação do mercado argentino mostra-se mais expressiva que no passado, o que se deve à redução das escalas de produção e dos níveis de rentabilidade e competitividade em virtude da aventura do plano de conversibilidade. Sem querer justificar a atitude do país vizinho, que figura em segundo lugar como destino de nossas exportações, e com o qual já acumulamos superávit de US$ 1,3 bilhão entre janeiro e setembro de 2004, vale enfatizar o outro lado da questão, geralmente esquecido pelos analistas brasileiros: a importância para o Brasil do mercado argentino, especialmente nos itens de maior valor agregado. Alguns exemplos saltam aos olhos. No conjunto do setor automotivo, durante o primeiro semestre de 2004 25% de nossas exportações foram direcionadas ao mercado argentino, percentual que supera 20% no conjunto do setor químico, e encosta nessa faixa para o setor eletroeletrônico. O caso dos celulares é paradigmático da importância da Argentina para nossa inserção externa, mas também da sua insuficiência. Em 1998, o Brasil possuía déficit no segmento, contra um superávit pouco expressivo com a Argentina. Em 2000, o superávit brasileiro chega a US$ 707 milhões, perfazendo a Argentina cerca de 50% desse resultado. Em 2002, as exportações brasileiras para o parceiro privilegiado quase zeraram. No ano seguinte, o país volta a ostentar superávit com a Argentina, nos níveis de 1998. A surpresa está no fato de que as exportações foram transferidas para os EUA, para o que contribuiu o teste proporcionado pelo mercado argentino, transformando plantas "brasileiras" em plataformas de exportações. Em síntese, a redução dos conflitos comerciais, além da disposição negociadora de ambas as partes, depende da resolução de, pelo menos, duas questões mais amplas: a) a recuperação sustentada dos mercados domésticos; b) a inserção competitiva em novos mercados, ou seja, para além do Mercosul. A crítica ao Mercosul, proveniente em grande medida de grupos relacionados à cadeia do agribusiness, talvez faça sentido nesses setores, onde a competitividade brasileira é quase natural, e a Argentina aparece mais como concorrente do que como mercado expressivo. Mas se olharmos para o conjunto da nossa pauta de comércio, a história parece ser outra. Nesse sentido, o atraso nas negociações intra e extrabloco não pode ser entendido fora do contexto macroeconômico dos dois países e da crescente assimetria em termos de competitividade. O retrocesso da integração produtiva de vários setores ilustra ainda o grau do envelhecimento da agenda "mercosuliana", muito presa aos temas puramente comerciais e longe dos temas como convergência financeira e cambial, políticas industriais e de concorrência. Portanto, não podemos nos dar ao luxo de diluir a margem de preferência construída no mercado regional, em particular na Argentina, que, embora insuficiente, segue sendo estratégica para uma inserção brasileira mais qualificada no cenário internacional.