Título: Bolsa Família não é um incentivo à preguiça
Autor: Fabio Veras Soares e Sergei Soares
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2006, Opinião, p. A10

Estrato beneficiado tem alta taxa de participação no mercado de trabalho

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2004 revelam que o Bolsa Família começou a ter impacto sobre a pobreza e a distribuição de renda. Estes dados, no entanto, ainda são preliminares porque o suplemento da PNAD que identifica as transferências governamentais ainda não está disponível. Por essa razão, não podemos separar com precisão a renda proveniente do Bolsa Família das rendas de dividendos, juros e seguro-desemprego. Todos esses componentes da renda são captados na variável que o IBGE chama de "outras rendas", excluindo a renda do trabalho e de aposentadorias, pensões, aluguéis e doações. No entanto, se olharmos para a evolução das "outras rendas" ao longo do tempo e sua distribuição na população é possível ter uma noção razoável da direção das mudanças que a ampliação do Bolsa Família teve sobre esse componente. As "outras rendas" foi o único componente da renda das famílias que apresentou uma mudança substantiva na sua distribuição por estratos de renda. De um componente extremamente concentrado nos estratos de maior renda (provavelmente devido aos juros), ele passou a ser um dos componentes mais desconcentrados. O coeficiente de concentração das "outras rendas" (uma medida de desigualdade que quanto mais alta pior), que era de 78,8 em 1995 - o mais alto entre todos os componentes de renda -, caiu para 15,9 em 2004. Em 1995, apenas 1% das pessoas classificadas entre os 10% mais pobres tinha alguma remuneração que advinha do componente de "outras rendas". Em 2004, este percentual subiu para 53%. É difícil imaginar que esse salto possa ser explicado por um aumento da participação de juros e dividendos no rendimento das famílias mais pobres. Podemos, portanto, atribuí-lo à grande expansão dos programas de transferência de renda. Tal fato, que deveria ser comemorado pelos que acreditam que as transferências governamentais de caráter assistencial devam ser dirigidas aos que mais precisam, tem sido lamentado por muitos que acreditam que a transferência de renda perpetua a miséria, consistindo em mera "esmola" do governo. Em particular, teme-se que a transferência acomode os pobres: "a preguiça é a mãe da pobreza", diz o ditado popular. Em "economês", teme-se que a transferência - que varia entre R$ 15,00 a R$ 95,00 - venha a diminuir a oferta de trabalho nos domicílios beneficiados. Este receio tem fundamento? Existe uma avaliação dos impactos do Bolsa Família, mas a pesquisa está em andamento e os resultados ainda não estão disponíveis. Na ausência de avaliações de impacto robustas sobre o Bolsa Família, podemos procurar alguns indícios em estatísticas simples da PNAD e na experiência internacional com programas semelhantes.

Não há base empírica para a crença de que a preguiça é um efeito universal dos programas de transferência de renda

Em 1997, o governo mexicano começou um programa de transferência condicionada de renda, o Progresa (hoje Oportunidades), similar ao Bolsa Família. Este programa foi submetido a uma série de avaliações rigorosas que buscaram, entre outras coisas, verificar o impacto do programa sobre a oferta de trabalho e sobre o uso do tempo nos domicílios recipientes do benefício. Duas avaliações independentes (http://www.ifpri.org/themes/ progresa/pdf/ParkerSkoufias_timeuse.pdf e http://wwwtest.aup. edu/lacea2005/system/step2_ php/papers/freije_sfre.pdf) mostraram que o programa teve um impacto desprezível sobre a oferta de trabalho de mulheres e homens adultos e um impacto negativo sobre o trabalho de crianças e adolescentes. Além disso, o programa foi responsável por um terço da redução da pobreza rural no México desde sua implementação. Ou seja, reduziu o trabalho infantil, não teve impacto sofre a oferta de trabalho de adultos e ainda conseguiu reduzir a pobreza. Portanto, não há base empírica para a crença de que a preguiça é um efeito universal de programas de transferência de renda. Mas isso ocorreu no México. Talvez os brasileiros pobres sejam mais sujeitos à preguiça que os mexicanos.

O que podemos dizer usando os dados da PNAD?

A PNAD nos permite investigar, de maneira exploratória, se a taxa de participação no mercado de trabalho - a proporção de pessoas em idade ativa que está trabalhando ou procurando trabalho - para pessoas no mesmo estrato de renda é menor para aquelas que vivem em domicílios que têm renda proveniente do componente de "outras rendas" do que para as que vivem em domicílios que não auferem esse tipo de renda. Grosso modo, se o Bolsa Família causasse um desestímulo ao trabalho não seria surpresa se a taxa de participação de domicílios no estratos mais pobres da distribuição de renda fosse menor entre aquelas pessoas que recebem renda proveniente deste componente. E o que dizem os dados? Considerando uma população em idade ativa de 18 a 65 anos, observa-se que para os 10% mais pobres, a taxa de participação dos que vivem em domicílios que têm rendimentos oriundos de "outras rendas" é 4% maior do que a taxa dos que não recebem. Esse dado contraria a idéia de que os beneficiários das "outras rendas" nos estratos mais pobres - onde o Bolsa Família deve ter um peso maior - teriam um incentivo a participar menos do mercado de trabalho. Entre os 10% mais ricos, ao contrário, os moradores de domicílios que recebem "outras rendas" - onde a renda de juros deve ter um peso maior - têm uma taxa de participação 1% menor do que aqueles que não as recebem. Observa-se assim que, se as "outras rendas" têm um efeito negativo sobre o mercado de trabalho, este efeito ocorre entre os mais ricos. Talvez o "efeito-preguiça" não seja observado entre os mais pobres que recebem a "esmola" do Bolsa Família, mas sim entre os mais ricos que recebem "as esmolas" dos juros sobre suas aplicações financeiras.