Título: Câmbio, reservas e "doença holandesa"
Autor: Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2006, Opinião, p. A11

Apesar da valorização cambial, as exportações brasileiras vêm crescendo a uma taxa superior à média mundial e os superávits comerciais têm atingido recordes sucessivos. Não há mistério nesse comportamento. Desde 2002, os preços internacionais das commodities estão próximos de seus valores máximos e as exportações mundiais crescem a uma taxa superior ao dobro da média histórica. Nas nossas exportações predominam commodities, independentemente de serem classificadas como manufaturados ou básicos, fazendo com que a valorização do real fosse compensada pela elevação dos preços internacionais. Na realidade, a causalidade ocorreu na direção inversa: foi o aumento dos preços internacionais das commodities e o crescimento do total das exportações mundiais que impulsionou as exportações brasileiras, gerando os superávits nas contas correntes que valorizaram o câmbio real. A valorização do real seria inevitável mesmo com taxas domésticas de juros muito mais baixas, em razão do choque externo que vem valorizando inexoravelmente o câmbio real. Com isso, desmoralizaram-se as previsões das "cassandras", que olhavam só para o câmbio real e não para a economia mundial. Diante das perspectivas de manutenção de preços de commodities e de elevadas taxas de expansão do comércio mundial em 2006, o Brasil continuará tendo que conviver com as mesmas forças que produziram a valorização cambial. Porém, ainda que os setores estimulados a manter o crescimento das exportações sejam predominantes, há outros que não se beneficiaram de quaisquer aumentos de preços internacionais, como o têxtil e o de calçados, por exemplo. Por isso, é tentadora a analogia da situação brasileira com o fenômeno ocorrido na Holanda, quando a elevação dos preços internacionais do petróleo conduziu à valorização do dutch guilder e a uma crise nos setores exportadores tradicionais. Como combater essa "doença holandesa", evitando danos aos setores tradicionais? A primeira sugestão, politicamente mais agradável, mas economicamente mais custosa, é sustentar o real com intervenções no mercado cambial. A segunda, com apelo político menor, mas economicamente mais correta, é utilizar ações microeconômicas para ajudar setores mais danificados pela valorização cambial.

Para incentivar um setor são necessárias ações diretas, e não medidas macroeconômicas que produzam externalidades negativas sobre os demais

O Brasil vem intervindo pesadamente no mercado de câmbio, e as autoridades econômicas declaram que estão buscando a acumulação de reservas e a redução da dívida pública atrelada ao dólar. Intervenções nos mercados à vista e futuro de câmbio produzem estes resultados, mas quem olhar para os custos e benefícios dessa estratégia concluirá que ela não faz sentido. Os benefícios da acumulação de reservas são menores no regime de câmbio flexível do que no de câmbio fixo; são menores diante de superávits nas contas correntes; e declinam com o crescimento das reservas e com o aumento da liquidez internacional. Esta listagem mostra que o benefício marginal de uma acumulação adicional de reservas é pequeno relativamente ao custo marginal de sua esterilização, que depende da taxa doméstica de juros. Por outro lado, a presença de uma dívida pública atrelada ao dólar é um risco quando o câmbio se desvaloriza, mas é um benefício quando o câmbio se valoriza. Ao eliminar a componente dolarizada da dívida pública interna, e mais ainda, ao buscar a eliminação da dívida líquida atrelada ao dólar, o governo estaria condicionando a dinâmica da dívida pública totalmente à magnitude das taxas reais de juros e de crescimento econômico, tendo que elevar os superávits primários. Como as nossas autoridades monetárias não ignoram estes custos, e sabem que quando eles são incorridos produzem uma piora nas contas fiscais, nossa hipótese é que sua maior motivação não derivou nem do objetivo de acumular reservas, nem de reduzir a componente dolarizada da dívida pública, mas sim do objetivo de sustentar o real, evitando os custos da "doença holandesa". No Brasil, a formação bruta de capital fixo guarda uma correlação positiva elevada com as importações. Portanto, reduzir o custo das importações significa reduzir o custo do capital, estimulando os investimentos. O benefício derivado do aumento das exportações não é a geração de elevados superávits comerciais e nas contas correntes, mas sim o aumento das importações. Há mais de 200 anos, Adam Smith demonstrou o erro da visão mercantilista, ao explicar que a riqueza das nações deriva de sua capacidade de produzir mais eficientemente e não da acumulação de reservas internacionais e de superávits comerciais. O Brasil deveria perseguir o aumento das importações, baixando seus custos, mas caminhamos na direção oposta, com a incidência do PIS e da Cofins sobre as importações. A visão míope de buscar receitas para elevar os gastos públicos elevou o custo das importações, reforçando o nosso viés "mercantilista", em vez de contribuir para o aumento dos investimentos e da produtividade. Por outro lado, ao intervir para sustentar o real impedimos a queda mais rápida da inflação, o que conduz a taxas reais de juros mais elevadas, desestimulando investimentos e reforçando a valorização do real, quer porque atraímos mais capitais de curto prazo, quer porque impedimos o crescimento econômico e o aumento das importações. A teoria econômica ensina que para incentivar um particular setor são necessárias medidas que o afetem diretamente, e não medidas macroeconômicas gerais que produzam externalidades negativas sobre os demais setores. Se os setores têxtil e de calçados vêm sofrendo os efeitos da valorização do real, é melhor reduzir os impostos indiretos, estimulando o consumo doméstico para compensar a queda das exportações; baixar as tarifas sobre a importação de máquinas equipamentos e matérias-primas que permitam a redução de seus custos, induzindo os investimentos; e utilizar o BNDES para financiar investimentos que aumentem a produtividade. Mas isto exigiria uma visão muito clara sobre os mecanismos que promovem o desenvolvimento econômico e o aumento da eficiência produtiva, que parece ser um fator escasso no presente governo.