Título: Pobres liberdades civis
Autor: Jacob Weisberg
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2006, Opinião, p. A11

Argumentos da Casa Branca ameaçam o conceito de freios e contrapesos da América

É tentador minimizar o debate em torno da espionagem de americanos promovida pela Agência de Segurança Nacional (NSA) e caracterizá-lo como um conflito técnico em torno de direitos processuais. O presidente acredita que tem a autoridade legal para dar ordem de bisbilhotar por meios eletrônicos sem pedir permissão a ninguém. Os defensores das liberdades civis e pessoas preocupadas com a privacidade consideram que George W. Bush precisa ter uma ordem judicial do tribunal especial criado para autorizar escutas telefônicas em casos de segurança nacional. Na prática, porém, o dito tribunal Fisa, que emite esses mandados judiciais, funciona mesmo como uma máquina de aprovações das decisões do Executivo - então, qual é a diferença, no fim das contas? Se fosse tão pouco o que está em jogo! Na verdade, as sessões do Senado sobre a espionagem interna praticada pela NSA, cujo início está marcado para o próximo mês, confrontarão questões fundamentais sobre o equilíbrio do poder dentro do nosso sistema. Mesmo se supormos que cada caso desconhecido de espionagem sem mandado judicial praticado pela NSA tenha sido justificado a pretexto da segurança, os argumentos procedentes da Casa Branca ameaçam o conceito de freios e contrapesos, da forma como estes têm sido entendidos por 218 anos na América. Para simplificar, Bush e seus advogados alegam que os poderes de segurança nacional do presidente são ilimitados. E, considerando-se que a guerra contra o terror está programada atualmente para durar indefinidamente, a supremacia do Executivo que estão reivindicando não será uma condição temporária. O extremismo da posição de Bush se configura claramente em um documento de 42 páginas, emitido pelo Departamento de Justiça em meados de janeiro. Como escreveu Andrew Cohen, analista jurídico da CBS, em análise online: "Na primeira vez em que você lê o 'informe oficial', fica com a impressão de que ele está descrevendo um país estrangeiro regido por uma constituição desconhecida". Elaborando um pouco mais essa idéia, a nação implícita nesse documento seria uma ditadura eleita, regida não por três esferas de governo em equilíbrio, mas por um déspota reservado, possivelmente afável, assustadoramente poderoso. De acordo com o procurador-geral dos EUA, Alberto Gonzáles, o presumido autor do documento oficial, os poderes do presidente na sua condição de comandante-em-chefe o transformam "no único órgão do país em assuntos estrangeiros". Essa condição, que decorre do Artigo II da Constituição, traz consigo a autoridade de realizar vigilância sem mandado, com o propósito de desbaratar possíveis atentados terroristas contra os EUA. Esse poder já soa ilimitado - porém, de acordo com Gonzáles, esse órgão exclusivo acumulou ainda mais autoridade sob a "Autorização para o Uso de Força Militar", do Congresso, aprovada na esteira dos atentados de 11 de setembro. Essa resolução é invariavelmente mencionada através da sigla "Aumf" - o som, quiçá, das liberdades civis emitido por uma democracia. Na linguagem do informe oficial, a potente fórmula do Artigo II mais Aumf "coloca o presidente no zênite dos seus poderes", conferindo-lhe "tudo o que ele detém por seus próprios méritos mais tudo o que o Congresso pode delegar".

Como a guerra contra o terror está programada para durar indefinidamente, a supremacia do Executivo não será uma condição temporária

Essa nota monarquista um tanto aloucada segue a lógica legalista que relembra a conversa de Alice com a Lebre de Março. O Departamento de Justiça interpreta o Aumf como uma autorização expressa para vigiar sem ordem judicial, embora a resolução aprovada pelo Congresso não tivesse essa intenção nem implicasse nada desse tipo. A insistência do presidente em afirmar que só ele pode adivinhar o significado oculto da lei condiz com sua recentemente percebida prática de anexar "declarações de ratificação" a projetos de lei - como em "ao sancionar este projeto de lei contra a tortura e transformá-lo em lei, eu declaro que ela não tem nenhum poder sobre mim". Similarmente, em seu informe oficial, Bush chega a declarar: "Eu estipulo o que as minhas palavras significam e, também, que só eu posso determinar o que as suas significam". Distorcer declarações vagas para transformá-las em autorização específica é uma interpretação forçada. É na inversão de proibições específicas para permissão generalizada, porém, que Gonzáles procura alcançar o estilo verdadeiramente Orwelliano. A lei "Federal Intelligence Surveillance Act" (Fisa) de 1978 não só não autoriza o grampo sem mandado de Bush, como o proíbe clara e especificamente, ao prescrever o sistema de tribunal da Fisa como método "exclusivo" para autorizar a vigilância eletrônica para fins de coleta de informação. Com uma pequena ajuda do informe oficial, no entanto, essa proteção também fica "Aumf"; Gonzáles propõe que a lei "Foreign Intelligence Surveillance Act" seja interpretada como sendo coerente com a posição de que o rei Zênite pode espionar eletronicamente qualquer pessoa que queira, (tornando-a, pois, sem significado), ou que, por outro lado, seja descartada como uma irrelevância inconstitucional. A mensagem de Bush aos tribunais, assim como a sua mensagem ao Congresso, é: abram alas, súditos. Seu discreto desvio circundando os magistrados federais membros do tribunal Fisa é completamente coerente com a posição da Casa Branca nos grandes casos de liberdades civis sobre o terrorismo, que sustenta que os juízes carecem de jurisdição para interferir em decisões presidenciais que tratam sobre quem prender e sobre a forma de tratá-los. O problema final com as teorias da autoridade irrestrita do executivo de Gonzáles é que elas, como dizem os advogados, comprovam em demasia. A justificativa do Artigo II mais Aumf para a espionagem sem mandado judicial é essencialmente a mesma que a administração tem promovido para desculpar a tortura, ignorar a Convenção de Genebra e manter indefinidamente até mesmo cidadãos dos EUA sem audiência, acusações ou julgamento. A tortura ou a detenção sem o devido processo legal já é ruim o bastante. Mas porque esse raciocínio polivalente não se estende também à censura da imprensa ou à detenção de oponentes políticos, caso o presidente venha a julgar tais medidas vitais para a segurança do país? Não sugiro que Bush nutre qualquer intenção desse tipo - ou que mesmo um Congresso tão indolente como o atual continuaria passivo se ele fosse tão longe. A mais recente afirmação do presidente, porém, de que só ele pode garantir as nossas liberdades civis, não é só perturbadora e equivocada. É francamente não-americana.