Título: Alan Greenspan, a análise econômica e a econometria
Autor: Antonio Prado
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2006, Opinião, p. A10

Não há o que substitua o discernimento e a percepção fina das necessidades da sociedade

A análise econômica é sempre um campo em que a controvérsia é garantida. Apesar do sonho de transformar essa triste ciência em ciência tout cour, o fato é que não chegamos nunca aos feitos da física, como a colisão de uma pequena sonda em um cometa a milhões de quilômetros da terra. Os dispositivos matemáticos dos economistas não acertariam o sol, apesar da sua óbvia visibilidade e imensa atração gravitacional. Esta parece ser uma conclusão amarga que poderia até soar como sugestão de abandono do campo. Não é o caso, é apenas uma constatação das limitações desta que é uma ciência humana, porque seu objeto não é o estudo da natureza e suas forças, mas das relações sociais e econômicas e suas implicações. Muito na ciência econômica foi inspirado em outros campos. Os fisiocratas usaram a descrição médica da circulação sanguínea para criar o primeiro fluxo circular da renda, eternizada na confusa e genial tabela econômica de Quesnay, que inspirou os esquemas de reprodução de Marx e Kalecki e firmou-se na matriz de Leontief. A física newtoniana dá até hoje suporte para as teorias de equilíbrio estático e dinâmico da economia com extração marshalliana. As manchas solares influenciaram as formulações de ciclos econômicos de Jevons. A evolução das espécies de Darwin foi incorporada tanto nos interessantes estudos schumpeterianos sobre o desenvolvimento como nas lamentáveis metáforas do darwinismo social, adotadas até hoje pelos ortodoxos do (neo)liberalismo. O princípio da incerteza de Heisenberg vem fascinando toda uma geração de economistas, principalmente os que além de teorizar, especulam nos mercados financeiros. Os fractais de Mandelbrot, que são a imagem plástica da teoria do caos, inspiraram as análises sobre as bolsas de valores e derivativos, mas nem por isso impediram a quase catastrófica quebra do LCTM. Schumpeter sugeriu de forma sábia que a análise econômica deveria considerar a teoria, a história, a estatística e a ciência social. Alguns preferem apenas algumas combinatórias, a teoria econômica e a estatística, e dela extraem os modelos econométricos; apenas a teoria e dela produzem análises mecanicistas; a história e a ciência social, de onde surgem belos discursos. Raramente acertam em suas análises, pelo menos em tempo hábil. Errar é ofício humano. Porém, fazê-lo com fundamento e elegância é ofício dos macroeconomistas. Uma autoridade monetária que decide apenas com base em modelos econométricos corre o risco de não acertar o sol. Isso porque as condições econômicas sofrem mudanças rápidas, que exigem correções de rotas constantes. A rota pode até ser mantida e o alvo atingido, mas a um custo alto e desnecessário. Alan Blinder, que foi vice-presidente do Banco Central americano, busca em recente artigo a existência de um padrão Greenspan de gestão monetária e conclui que a sintonia fina foi sua marca. Sua reflexão é muito interessante, não aborrece o leitor e ilumina os escaninhos de um banco central, o FED, que é tido como pouco transparente, apesar de muito eficaz no cumprimento de seu mandato.

Sob Greenspan, sistemas monetários americano e mundial sobreviveram a uma sucessão de fatos com potencial disruptivo

Não foram apenas os poderes econômico e político americanos avassaladores que facilitaram o seu trabalho - isso Volcker também tinha à sua disposição, mas seu apego ao mundo real. Nunca deixou de consultar os dados, os modelos, as convicções técnicas, tampouco deixou de ouvir o momento dos conselhos de sua tia e de adotar a intuição dos velhos analistas. Por isso, quando o pensamento convencional atestava que a taxa de desemprego americana não poderia ser menor que 6%, entendida como a taxa natural de desemprego, a partir da qual haveria uma aceleração inflacionária inexorável (Nairu), foi à frente, testou o ícone acadêmico e venceu. Conseguiu cumprir o mandato dual do FED durante 18 anos, o de ter a maior taxa de crescimento econômico com a menor taxa de inflação possível. E não foram anos fáceis, como bem sentimos em nossas paragens. Enfrentou bolhas imobiliárias que colocaram em risco o sistema de crédito e as finanças das famílias americanas, a quebra do LCTM - dirigido por dois prêmios Nobel de economia, que conseguiram atrair mais US$ trilhão para sua carteira, e quase geraram uma crise sistêmica de proporções cósmicas -, lidou com o colapso da ações da Nasdaq, quando a especulação chegou a um ponto que a exuberância irracional se transformou em mais um pânico de manadas, como a crise das tulipas da Holanda do século XVII. Na esteira da bolha da Nova Economia, vieram os escândalos das fraudes financeiras que dilapidaram os fundos de pensão e as poupanças de milhões de pequenos aplicadores, como o escândalo da Enron, WorlCom, Arthur Andersen e muitas outras empresas, até então de altíssima reputação. Ainda vieram os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, as guerras do Afeganistão e do Iraque, mais um choque de petróleo, os estouro das commodities metálicas e agrícolas. Poucos se dão conta que os ataques terroristas foram ao núcleo do poder americano, expresso pelas finanças e a força militar. Não se tratava apenas dos prejuízos materiais e perdas humanas imediatos, mas do efeito sobre as expectativas e o sentimento de segurança dos cidadãos e dos operadores financeiros. Greenspan percebeu que a preferência pela liquidez iria explodir e com ela a taxa de juros. A primeira de fato escalou às alturas do desastre, mas as taxas de juros, não, pois o FED ampliou a oferta monetária a gosto e trouxe a taxas de juros reais para valores negativos e impediu o colapso. Olhar ao seu redor foi seu método e a ponderação, sua virtude. Foi um gestor, sem dúvida, hábil dos riscos do ambiente econômico. Alguns o consideram o maior presidente de banco central que já existiu. Pode ser exagero, mas o fato é que depois de tantos episódios potencialmente disruptivos, os sistemas monetários americano e mundial sobreviveram. A lição que deixa é que não há o que substitua o discernimento e a percepção fina das necessidades da sociedade.