Título: Reino Unido abre seus arquivos de serviços de espionagem do país
Autor: Vitor Paolozzi
Fonte: Valor Econômico, 01/02/2006, Internacional, p. A7

Por mais de oito décadas o serviço secreto britânico ficou envolto em um manto de mistério tão grande que sequer teve a sua existência reconhecida pelo governo. A situação começou a mudar em 1994, quando o então premiê, John Major, admitiu oficialmente que, sim, o Reino Unido tinha espiões. Mas, agora, chega ao ponto de atingir um nível quase insólito: o Serviço de Inteligência Secreto (SIS) já tem site na internet e planeja publicar um livro revelando a sua história. "A tendência no Reino Unido, nos últimos 20 anos, tem sido na direção de muito mais abertura e transparência, o que é uma coisa boa", diz o historiador irlandês Keith Jeffery em entrevista ao Valor. Jeffery, professor da Queen´s University, em Belfast, recebeu no final do ano passado convite do SIS para ter acesso irrestrito a todos os arquivos referentes ao período entre 1909, ano de criação da agência, e 1949. Em troca, Jeffery terá que escrever um livro, previsto para ser publicado somente em 2010, contando a trajetória da organização que também é conhecida como MI6 (abreviação de um antigo nome, military intelligence, section 6) e que ficou notabilizada mundialmente como o local de trabalho de James Bond, o agente 007 criado por Ian Fleming. De acordo com o Ato dos Serviços de Inteligência, de 1994, as tarefas do MI6 são "obter e fornecer informações relacionadas às ações ou intenções de pessoas fora das ilhas britânicas" (já o MI5 é responsável por combater a espionagem estrangeira dentro do Reino Unido). O ato também permite, desde que com aprovação especial, a realização de missões secretas no exterior que seriam ilegais se feitas dentro do Reino Unido. Entre as incumbências não-escritas do MI6, segundo declarou à BBC um ex-membro da comunidade de segurança, consta a espionagem industrial. Embora 007 pertença ao mundo da ficção, muita coisa que foi parar na obra de Ian Fleming e nas telas de cinema guarda semelhanças com as missões de agentes reais. Jeffery afirma que certamente um dos assuntos que explorará nos arquivos secretos do SIS são as informações referentes a Sidney Reilly, conhecido como o "Ás dos Espiões", um dos agentes que serviram de inspiração para o personagem criado por Fleming. Tendo morado em várias partes do mundo - segundo consta, até no Brasil, no final do Século XIX -, com um estilo de vida de milionário e a companhia de inúmeras mulheres e amantes, Reilly realizou diversas missões para o SIS, incluindo uma tentativa fracassada de derrubar o governo comunista da Rússia, em 1918. Reilly, porém, não teve a mesma sorte de Bond: preso pela polícia secreta bolchevique em 1925, na última de suas várias viagens a Moscou, foi assassinado depois de cinco semanas de interrogatórios. Um dos temas que Jeffery garante que certamente estará nas suas investigações é o que chama de "questão de comando e controle": a falta de transparência e a virtual impossibilidade de se responsabilizar aqueles que cometessem erros geraram a crença de que a organização simplesmente fazia o que queria, operando à margem do governo. A necessidade de se impor limites à atuação da agência foi uma das principais razões que levaram Major a oficializar a existência do SIS em 1994. Outro ponto a ser analisado pelo historiador é o processo de recrutamento de agentes. Críticos do SIS também afirmam que o serviço secreto arregimentou criminosos de guerra para suas fileiras. Um dos casos mais conhecidos é o do lituano Antanas Gecas, um ex-colaborador nazista acusado de ter comandado massacres em massa de judeus durante a Segunda Guerra, que passou a trabalhar para o MI6 e ganhou abrigo na Escócia durante décadas, até sua morte em 2001. O historiador afirma que o fato de sua pesquisa ser fruto de um convite não o obrigará a deixar de expor fatos que possam denegrir a imagem do SIS. Como a pesquisa de Jeffery estará limitada até o ano de 1949, ele não terá condições de descobrir se são verdadeiras as acusações de que o MI6 já planejou a morte de vários governantes, como o egípcio Gamal Abdul Nasser (com chocolates envenenados), o líbio Muammar Gaddafi e o sérvio Slobodan Milosevic (num acidente de carro). Mas, de qualquer forma, também não faltam relatos de operações questionáveis anteriores a 1949, como os planos para o assassinato de Lênin. "Vou contar tudo da maneira como vejo, como um historiador profissional, tirando conclusões a partir das evidências. Vou fazer a pesquisa com o entendimento de que poderei ver tudo. Se não for assim, não farei", promete Jeffery.