Título: Limites ao uso eleitoral do Poder Legislativo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2006, Opinião, p. A16

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, que impediu a CPI dos Bingos de quebrar os sigilos bancário, fiscal e telefônico do presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, não deve ser interpretada, de forma reduzida, como uma mera interferência do Poder Judiciário nas decisões do Legislativo. Nos últimos anos, não faltaram ocasiões em que a corte agiu politicamente, contra a recomendação da melhor doutrina jurídica. Mas, nesse caso, existem fatos que podem justificar a ação do STF. Também diz a doutrina democrática que os eleitos, uma vez investidos de seus mandatos no Parlamento, compõem um Poder Legislativo com prerrogativas de legislar e fiscalizar o Poder Executivo. É uma suposição de que o político desceu do palanque e passou a ser parte integrante de um poder cujas prerrogativas estão em equilíbrio com as dos demais. Da dinâmica interna do Legislativo faz parte, é lógico, a divergência política - tanto que lá estão representados partidos constituídos, que têm a possibilidade de se organizarem em blocos de oposição e situação. A ação política faz parte da ação parlamentar mas, quando passa a ser a única coisa que move o Legislativo, cria-se um perigoso desequilíbrio entre os poderes. Desde a primeira denúncia de um suposto mensalão patrocinado pelo PT, feita pelo deputado posteriormente cassado Roberto Jefferson, os partidos vêm numa escalada de instrumentalização política do Congresso, em particular das CPIs. Em seguida à instalação da primeira, que investigaria os Correios, o STF determinou a instalação de outra que estava na gaveta, a dos Bingos. Em seguida, a situação confrontou a oposição com a do Mensalão, que poderia retroceder até o governo FHC. A CPI dos Correios caminha com algum norte, embora sem objetividade. A do Mensalão morreu como nasceu, sem que ninguém percebesse nem uma coisa, nem outra. A CPI dos Bingos, todavia, acabou se constituindo num instrumento político da oposição. Ao longo do tempo, ganhou o apelido de "CPI do Fim do Mundo": os bingos viraram apenas uma tênue lembrança. A maioria oposicionista manobrou depoimentos e investigações ao sabor da necessidade de fustigar mais ou menos o governo e o seu partido, o PT. O STF interferiu numa situação política, quando bloqueou a quebra do sigilo de Okamotto. Mas o fato técnico é que a acusação feita ao presidente do Sebrae é a de que ele saldou uma dívida de Lula com o PT. O que isso tem a ver com os bingos de Waldomiro Diniz, que motivaram a CPI, não se sabe. À revolta da oposição com a decisão de Jobim se contrapõe outro fato. Foi o próprio STF que, em junho do ano passado - quando as acusações contra o governo petista já pegavam fogo - determinou ao Senado que instalasse a CPI em questão. Ela estava no limbo do Senado havia um ano, obstruída pela recusa da bancada governista a indicar membros para que começasse a funcionar. Na ocasião, o Supremo decidiu que o funcionamento da CPI era um direito da minoria - e ninguém considerou que essa decisão se constituía numa ingerência do Judiciário em assuntos do Legislativo. O fato é que as CPIs foram abertas com o único objetivo de servirem à ação política. Nessa dinâmica, as partes interessadas expandiram os seus limites muito além do que o regimento permite e fazem das comissões objeto de chantagem e barganha. Se os partidos tivessem simplesmente se dedicado a investigar os fatos que originaram cada uma delas, teriam chegado a algum lugar. O que aconteceu até agora, no entanto, é que viraram peças de ficção ou ponto de partida para negociações que envolvem poupar alguns e dar outras cabeças à ira pública. O deputado José Dirceu foi cassado sob o pretexto da punição política: as CPIs e o Conselho de Ética da Câmara reconheceram que não conseguiram colher prova concreta contra ele. Inexplicavelmente, uma CPI que insiste em pegar Lula via Okamotto poupa o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, quando há evidências contra a sua gestão na prefeitura de Ribeirão Preto - e, é certo, nenhum deles se enquadra no objeto da comissão. Na CPI dos Correios, linhas de investigação que podem importunar outros partidos são abandonadas e negociações são feitas para poupar um ou outro envolvido. Os parlamentares subiram no palanque muito antes das eleições de outubro. Fica difícil atacar uma decisão do Supremo que põe limite ao uso eleitoral do Legislativo.